Machado da Cruz responsabiliza Ricardo Salgado pela "ocultação do passivo"

Depois de ser acusado pelo ex-banqueiro, o antigo comissaire aux comptes da ESI revelou aos deputados que a "ocultação do passivo" não foi ideia sua, e sim de Salgado. E adensou o mistério sobre a ES Enterprise, que pode ter funcionado como um "saco azul".

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Machado da Cruz aos deputados: "Não estou orgulhoso, estou arrependido, mas é esta a realidade" Miguel Manso
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O antigo contabilista do GES foi ouvido sem jornalistas na sala Miguel Manso

Francisco Machado da Cruz foi directo ao assunto, logo no início da sua audição, à porta fechada, na comissão parlamentar de inquérito aos acontecimentos que levaram à falência de parte do Grupo Espírito Santo (GES) e à resolução do Banco Espírito Santo (BES). “O que eu fiz é algo que não me orgulho nada. Estou muito arrependido. Estou, nos últimos anos, em angústia", confessou.

O que fez, e está neste momento em investigação, no Parlamento, mas também em processos judiciais, em Portugal e no Luxemburgo, é uma tentativa — assumida pelo próprio Machado da Cruz — de ocultar os prejuízos da Espírito Santo International (ESI), para mascarar as contas do GES, que saiu da crise financeira internacional de 2008 em maus lençóis.

"O passivo foi ocultado porque o GES estava a ter perdas significativas. Era suposto ter sido só neste ano mas continuou, infelizmente, em 2009, 2010, 2011 até 2013."

O homem que assumiu ser "responsável pela contabilidade da ESI” assumiu no Parlamento que, logo em 2008, "escondeu" 180 milhões de euros de prejuízo das contas. Nos anos seguintes esse valor iria quase multiplicar por dez, até chegar aos 1,3 mil milhões de euros verificados no final de 2013. "Contudo, embora o passivo da ESI tivesse sido ocultado, eu sempre preparei as contas consolidadas e apresentei-as a Ricardo Salgado", acrescentou, aos deputados. Aliás, Machado da Cruz não deixa de apontar a responsabilidade ao seu antigo chefe: "Não fui eu que tive a ideia de ocultação, foi Ricardo Salgado, em 2008." E mais: todo o Conselho Superior sabia do passivo da ESI, adiantou.

O contabilista refere ainda que Salgado lhe assegurou que tudo se iria resolver. E ele garante ter acreditado, porque à sua frente estava "o homem mais poderoso de Portugal". E também por outra razão: "Lealdade", que Machado da Cruz diz ter pelo grupo e pelo banqueiro. O que fez, prossegue, foi "a pensar no grupo" e não em si próprio. "Não estou orgulhoso, estou arrependido, mas é esta a realidade”.

O depoimento de Francisco Machado da Cruz decorreu à porta fechada, a pedido do próprio, uma prerrogativa pouco habitual (que geralmente é concedida a membros dos serviços de informações) baseada numa alegada defesa do “segredo de justiça”. No entanto, como se pode constatar, nada do que aqui é reproduzido decorre de qualquer violação desse segredo: trata-se da versão do homem que Salgado acusou de ter manipulado as contas da ESI que, agora, devolve a acusação ao seu antigo patrão. No entanto, a mera divulgação das declarações de Machado da Cruz, pelos sites dos órgãos de informação, enquanto decorria a audição, levou o presidente da comissão, o social-democrata Fernando Negrão, a interromper os trabalhos para um raspanete à frente da testemunha.

Negrão acusou os assessores parlamentares de serem os autores da “inconfidência”, e recebeu do coordenador do PSD, Carlos Abreu Amorim, uma advertência pela acusação infundada. Ainda assim, Negrão exigiu que os assessores presentes desligassem os telemóveis e os computadores. Ainda que, naquela sala, decorresse uma audição que, a todos os títulos, devia ser pública. Aliás, o próprio Negrão confessou quarta-feira, à saída da audição a José Castella, também à porta fechada, que os trabalhos podiam ter decorrido com a presença dos jornalistas. 

A misteriosa ES Enterprise
As respostas de Machado da Cruz não se limitaram à questão das responsabilidades pela ocultação do passivo da ESI. Adensou-se, nesta audição, o mistério do alegado "saco azul" usado pelo GES para fazer pagamentos não documentados. As duas últimas audições, José Castella, e o contabilista do grupo, Francisco Machado da Cruz, confirmaram que, embora sendo administradores da Espírito Santo Enterprise (ES Enterprise), nunca “olharam” para as contas da sociedade de que, aliás, desconhecem o objecto social.

Nos últimos anos a ES Enterprise, uma sociedade fantasma do GES, fez circular via offshores com sede em várias praças internacionais, fundos da ordem dos 300 milhões de euros, que podem ter sido usados para pagamentos não documentados a terceiros e a entidades do grupo.

O eventual recurso do GES a um suposto "saco azul" foi revelado pelo PÚBLICO a 7 de Novembro de 2014, e não escapou ao escrutínio dos deputados que integram a comissão de inquérito parlamentar. Este quinta-feira o contabilista Machado da Cruz confirmou ter sido administrador da ES Enterprise, detida pela ESI, quando estava na Suíça, e que em Dezembro de 2013 lhe foi dito que o veículo estava fechado, informação que não lhe suscitou dúvidas. Garantiu, porém, nunca ter olhado para um balanço, não ter tido conhecimento de operações, nem assinado, que se recorde, um único documento. Inquirido pelo PCP sobre estas suas declarações admitiu até poder ser “chamado de pateta”, e justificou que isso aconteceu por estar exclusivamente concentrado na actividade que mantinha ao serviço do GES em Miami.

Machado da Cruz revelou também que confrontou José Castella, o secretário do Conselho Superior do GES (que na véspera, na comissão de inquérito, confirmou ser administrador do mesmo veículo), sobre as contas da ES Enterprise, tendo este este afirmado que também não as tinha visto, e que este assunto era tratado por outra pessoa: Jean-Luc Shneider, o controller financeiro da ESFG. Machado da Cruz explicou aos deputados que no GES se ligava muito "à palavra", para explicar esta aparente informalidade (dois administradores de uma empresa que desconhecem as suas contas...).

Na quarta-feira, já o PS tinha questionado José Castella sobre este tema. Na altura, Castella reconheceu que, embora fosse administrador da sociedade, desconhecia qual era o seu objecto social. Era caso único… O desconhecimento de Castella não se repetia em mais nenhuma outra sociedade onde exercia cargos. O mesmo responsável pela tesouraria do GES adiantou não se lembrar de ter assinado qualquer documento relacionado com a ES Enterprise e não poder explicar os fluxos financeiros do eventual "saco azul".

Uma das dúvidas que persistem prende-se com a entrada na ES Enterprise de verbas provenientes de Angola, nomeadamente, do BESA. Por exemplo, as verbas relacionadas com a venda da Escom — a empresa que esteve no centro do negócio dos submarinos, e que distribuiu verbas, entre outros, pelos principais ramos da família Espírito Santo.

As investigações à ES Enterprise são susceptíveis de abrir novas frentes que podem eventualmente culminar em revelações sensíveis sobre o perímetro de abrangência do núcleo duro da família Espírito Santo. O percurso dos fluxos financeiros de que terão já sido encontradas provas em contas bancárias passava pela gestora suíça Eurofin. A 4 de Dezembro, Alexandre Cadosch, o presidente do Eurofin, em entrevista ao PÚBLICO, remeteu explicações para Ricardo Salgado. Em resposta à pergunta “Nunca se questionou para que servia esse suposto saco azul do GES/BES?”, Cadosch respondeu que “sim”, questionou-se. “Mas de novo terão de ser eles a explicar.“

E essa explicação, apesar das tentativas dos deputados, não se tem revelado simples. Já estiveram no Parlamento os principais responsáveis financeiros e gestores (Salgado, Morais Pires, Castella e Machado da Cruz) bem como os representantes de todos os ramos da família. E ainda ninguém explicou para que servia a ES Enterprise.

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