O longo nariz de Cyrano deixa-o a um milímetro da felicidade

O desejo de Diogo Infante e João Mota levarem a palco Cyrano de Bergerac, longamente adiado, estreia-se finalmente no Teatro Nacional D. Maria II. Um texto clássico em que o tamanho do nariz fica aquém da poesia e do altruísmo.

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Diogo Infante é Cyrano de Bergerac Filipe Ferreira
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Filipe Ferreira
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Este Cyrano de Bergerac, encenado por João Mota e interpretado por Diogo Infante, estreia-se esta quinta-feira no Teatro Nacional D. Maria II com mais de dois anos de atraso. E, de certa forma, com os papéis invertidos.

A peça de Edmond Rostand tinha sido programada para Setembro de 2012 por Diogo Infante, enquanto director do Nacional, e convidava o Teatro A Comuna de João Mota a celebrar o 40º aniversário da companhia naquele palco. Mas o anúncio da suspensão da programação do teatro feito por Diogo Infante em Novembro de 2011, em resposta às medidas de austeridade decretadas pelo governo e acusando um “corte financeiro muito superior ao efectuado nos restantes Teatros Nacionais”, levaria à sua imediata demissão pelo então secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas. Para o lugar de Diogo Infante, foi então convidado João Mota.

“Hei-de fazer a peça”, lembra-se João Mota de ter prometido desde o primeiro minuto na cadeira. “Mas é muito difícil arranjar dinheiro porque é uma peça em que entra muita gente. Agora foi possível, antes de pensar que me ia embora – só soube há pouco tempo.” De facto, sendo Mota a abrir agora as portas a Diogo Infante para concretizar o projecto, é ele quem está de partida, depois do anúncio da sua não recondução e da nomeação para a direcção do D. Maria II do dramaturgo e actor Tiago Rodrigues. “Há sensivelmente um ano, quando o João terá percebido que se aproximava o culminar do seu próprio mandato”, diz Infante, “decidiu lançar-me o repto e desafiar-me a fazer este projecto que tinha ficado pendente. E eu fiquei muito contente que se pudesse finalmente concretizar.”

É de alma que se trata
O texto de Rostand é um amor antigo de Diogo Infante, desde que viu o virtuoso poeta, espadachim, filósofo, soldado e físico interpretado por Jean-Paul Belmondo nos seus tempos de estudante, em Paris. “Fiquei assoberbado, cheio, e é evidente que há um lado de pretensão minha em atrever-me sequer a colocar-me neste papel. Mas o papel fala por si”, justifica o actor. “É um clássico, um dos textos de referência do romantismo, mas sobretudo uma personagem muito apetecível para actores que, como eu, gostam do teatro clássico e da palavra do texto.” Daí que, quando abordou originalmente João Mota para falarem sobre uma peça comemorativa dos 40 anos d’A Comuna, à proposta do encenador para fazerem Fausto, de Goethe, Infante retorquiu com Cyrano, por estar há muito tempo à espera da ocasião para o fazer e por constituir “um desafio necessariamente egoísta enquanto intérprete”. “Agora, como venho de fazer a Ode Marítima, a dimensão poética da Ode, curiosamente, preparou-me para poder abraçar o lado romântico do Cyrano. Já não me intimida tanto. Permite-me até desfrutar de uma forma interior e interiorizada estas palavras e dar-lhes vida e alma – porque é de alma que se trata.”

É dessa alma transbordante que fala também João Mota, maravilhando-se com “o lado de humanidade, de transparência e de um sentido de beleza interior que leva a uma liberdade, a um sentido de classe, à ligação aos outros e a uma revolta.” A revolta de Cyrano, no fundo, é também uma revolta contra a mediocridade e contra a escassez de imaginação. Cyrano ameaça um actor sem talento, desafia e ridiculariza quem insulta a sua peculiaridade física de um nariz que o precede 15 minutos no tempo – assim o graceja – sem ter sequer a ousadia de refinar o insulto. Cyrano aproxima-se, pois, da ideia de um homem total, completo, como forma possível de sublimação e de eclipsar a sua fealdade.

E se, enfim, não lhe é permitido amar e ser amado por Roxanne (Sara Carinhas), a mulher que lhe exacerba a poesia, Cyrano coloca-se então ao serviço do amor para ajudar Christian (João Jesus) a ser mais do que uma cara por que Roxanne se apaixona. Assim, fala por ele na penumbra, segreda-lhe as palavras para chegar ao coração da rapariga e escreve febrilmente em nome de Christian cartas que arroubam o espírito da donzela muito mais do que qualquer rosto perfeito conseguiria. A história de Cyrano é por isso um exemplo de altruísmo, de abnegação, de sacrifício em favor de um amor que, estando-lhe aparentemente vedado, outros o podem viver.

Não deixando de notar o paradoxo de este Cyrano, cuja beleza lhe falha, se ver representado num mundo actual em que a imagem é largamente endeusada, Diogo Infante prefere concentrar-se “na preocupação de não julgar os outros pelas aparências” e na ideia de que “em cada olhar, em cada rosto há uma história”. As qualidades humanas de Cyrano, reforça, não são suficientes para o roubar de uma profunda infelicidade pelo simples facto de não ser amado. “Como não é amado acaba por converter essa energia na necessidade de provocar, porque é uma forma de se validar, de sentir que existe. Cyrano, sendo muito sensível, é alguém que passa ao lado da felicidade e fica a um milímetro de lhe tocar. Mas não é possível”.

Cyrano de Bergerac, entende o encenador, podia passar-se no séc. XX ou no séc. XXI sem que o seu alcance saísse beliscado. E essa certeza de perenidade é partilhada também por Diogo Infante ao crer que a peça “contém uma beleza intemporal que eleva o espírito”. “Daqui a 100 já não estaremos cá, mas este texto vai perdurar e alguém o estará a fazer num palco por esse mundo fora.”

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