O melhor que tivemos

Adeus à Linguagem, como todo o Godard de há pelo menos vinte anos, coloca-se num tempo “depois”, num tempo do fim, num tempo em que, definitivamente, já passou o que “tivemos de melhor”.

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Trailer Adeus à Linguagem

“Sim, foi o que tivemos de melhor, diz Deslauriers” - é uma das citações (Flaubert, no caso) que ocupa o “pré-genérico” de Adeus à Linguagem, filme que como quase todo o Godard desde sempre, e em especial o Godard desde Nouvelle Vague (1990), se constrói como grande colagem textual, e em certa medida imagética, com excertos e passagens retirados das mais diversas fontes.

Retirada ao contexto - A Educação Sentimental - a frase de Flaubert abre bem o caminho à indefinida melancolia de Adeus à Linguagem: é para ler com exaltação e exclamação, ou para ler com encolher de ombros e reticências?... Certo, certo, é que Adeus à Linguagem, como todo o Godard de há pelo menos vinte anos, se coloca num tempo “depois”, num tempo do fim, num tempo em que, definitivamente, já passou o que “tivemos de melhor”. Em simultâneo, não há apocalipse nenhum, as coisas são o que são e estão como estão - politicamente, poeticamente, sensivelmente, este mundo “depois” é reconhecivel como “este mundo”, este mundo de agora. Enquanto folheia um livro com pinturas de Nicolas de Stael, uma personagem interroga-se: “o fim de um mundo”, ou o “advento de um novo mundo”?

Este espaço “entre” (um fim e um advento) é daquilo que, lembrem-se da citação de Élie Faure que abria o Pierrot le Fou, mais interessa a Godard. É o mundo das formas indefinidas, já não fixas, ainda não estáveis. Um movimento permanente entre a luz e a sombra, entre a matéria e a evanescência, entre as coisas e a sua compreensão. Num certo sentido, um filme como este, para mais na sua versão 3D (a segunda experiência de Godard no procedimento, depois do genialmente intitulado Les Trois Désastres, filme curto resultante de uma encomenda de Guimarães 2012), procurar instalar-se, e tirar dela o máximo partido, nessa zona onde tudo é indefinição. É ver por exemplo, aqueles movimentos de câmara que acompanham uma personagem (uma mulher) até ao ponto em que se sobrepõe com outra personagem (um homem), e se passa dum 3D “claro” a um 3D que é um borrão, no limite da inteligibilidade visual, e isso não só faz um sentido poético imediato como também imediatamente se revela como a primeira vez (fora as experiências no 3D, arcaico e vanguardista, de cineastas como Ken Jacobs) em que o 3D aparece como um processo livre, totalmente a inventar para além das fórmulas instantaneamente cansadas e protocolares com que a “grande indústria” o acolheu nos últimos anos. E de resto - já agora, aconselhamos a que o filme seja visto duas vezes, primeiro na versão 3D, depois na 2D - que maravilhosas são as cenas em que Godard aponta a sua câmara 3D para o exacto oposto daquilo para que têm apontado as câmaras 3D: mesas de pequeno almoço em vez de naves espaciais, estantes com livros em vez de armas sofisticadas, homens e mulheres comuns, frequentemente despidos, em vez de criaturas fantásticas.

Neste filme que, além de ser sobre “o fim de tudo” é “sobre tudo”, essas cenas domésticas representam mesmo uma espécie de centro de gravidade. Há algum tempo que Godard não voltava assim a esse núcleo essencial de tantos momentos da sua obra: o reduto doméstico, o “casal”, a “fábrica” (expressão usada num filme antigo para definir essa união entre o trabalho “material” e o trabalho que faz um “casal”). Se se diz “adeus à linguagem” é também para encontrar esse ponto em que as palavras, os códigos, as fórmulas de comunicação pré-definidas, deixam de funcionar, com drama e com exuberância, e tudo existe como liberdade e potência, a inventar, a recriar, a ser visto “para além” da linguagem. Deixar, como noutra citação, “que o não-pensamento contamine o pensamento” - e é talvez por isto que aparece o protagonista não-humano (e “não-pensador”), o cão Roxy, “intérprete”, fazendo apenas as coisas que os cães fazem, de algumas das mais belas cenas e sequências do filme, aquelas em que, por bosques e lagos e citações de Monet, Godard continua a sua “reinvenção electrónica” do impressionismo (já vista no Elogio do Amor ou no Filme Socialismo). “O que está no exterior”, diz outra citação (agora Rilke), “só pode ser conhecido através do olhar do animal”. Adeus à linguagem, portanto, num filme que procura olhar, assim como nos desafia a olhar, com esse “olhar do animal”.

É com Roxy que nos despedimos, adormecido em cima dum sofá. A voz “off” comenta: “parece deprimido”. “Não”, contrapõe outra voz “off”, “está só a sonhar com as Ilhas Marquesas”. Num certo sentido, Adeus à Linguagem é um filme sobre esse sonho com as Ilhas Marquesas. Foi o melhor que tivemos. 

 

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