Animará Eusébio a vida do Panteão?

É importante que o gesto estatal de fazer entrar Eusébio no Panteão não sirva, mais uma vez, para reforçar os velhos mitos do integracionismo português.

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Cerimónias fúnebres de Eusébio no Estádio da Luz Nuno Ferreira Santos

Vai provavelmente confirmar-se o esperado: Eusébio da Silva Ferreira, o grande futebolista moçambicano do Benfica, falecido há um ano, está a caminho do Panteão, onde se encontram alguns dos vultos portugueses que, em épocas diferentes, o poder político considerou merecerem tal honra.

A evolução é notória. Foi já depois do 25 de Abril que duas figuras das “artes menores “, Amália Rodrigues na música popular, e Eusébio, no desporto, conquistaram estas distinções estatais. Se Amália foi a primeira mulher no Panteão, Eusébio vai ser o primeiro indivíduo negro a conquistar esse lugar, o que indiscutivelmente tem um valor simbólico.

Será difícil perscrutar todas as razões que conduzem a uma decisão como esta. É certamente importante assinalar esta democratização das honras estatais, ainda pouco visível, por exemplo, nas condecorações anuais concedidas pela Presidência da República, onde a escolha revela um afunilamento de classe, educacional, de género e racial. O arejamento social do Panteão é um fenómeno que pode ser atribuído à própria dinâmica democrática, a uma pressão vinda “de baixo”, do “povo”, ao sincero sentimento de muitos, mas também a um imperativo eleitoral, ou eleitoralista, o mesmo que explica a colagem cada vez mais evidente de políticos no poder às grandes manifestações desportivas, nomeadamente, como notou Nélson Évora numa crítica recente, quando se trata de comemorar vitórias em frente de uma câmara de televisão. Para alguns ministros, secretários de Estado e autarcas, sempre prontos a sorrir ao lado do vencedor, o talento dos desportistas converte-se, como por artes mágicas, em capital político. A mesma aproximação instrumental ao sucesso e popularidade de jogadores e clubes acaba por relevar a inusitada literacia futebolística de diversos comentadores mediáticos, muitos deles, aliás, ou vindos da política ou em transição para ela.

A recente inauguração da estátua de Cristiano Ronaldo no Funchal ilustra bem a dupla dimensão deste problema. Não é possível perceber a iniciativa fora das dinâmicas da política local e do regionalismo madeirense. Mas noutro sentido, a consagração do herói da cultura popular em estátua, não apenas enquanto herói desconhecido da nação – o soldado, o bombeiro, o resistente – mas enquanto figura global retratada como um super-herói dos tempos modernos, transforma as dinâmicas da memória oficial.  

Eusébio já tinha há mais tempo a sua estátua, que o representa em toda a sua excelência performativa. No Estádio da Luz este monumento, oferecido por um emigrante benfiquista residente nos Estados Unidos, tornou-se numa espécie de santuário dos amantes da bola e do clube, um local vivo e vivido, ao contrário do espaço de representação da glória nacional para onde irá agora o corpo de Eusébio. Animará Eusébio a vida do Panteão? É discutível que todos os que rumam à estátua do futebolista na Luz estejam preocupados com o modo como o jogador honrou a glória passada da nação. Talvez os seus afetos sejam outros e mereçam não ser engolidos por uma narrativa de história política orquestrada pelo Estado e por algumas das elites que o representam. O que significa Eusébio para aqueles que aprenderam a maravilhar-se com o seu jogo? O que significa para os portugueses, mas também os moçambicanos, ou para alguém de qualquer outro lugar que tenha aprendido a apreciar o seu talento?

Mas talvez a melhor forma de comemorar a ida do extraordinário Eusébio para o Panteão seja transformar a circunstância, que vai nos próximos dias, por diferentes razões, opor defensores e detratores, em ocasião para debate. Seria melhor assim do que usar a patrimonialização do jogador como instância de normalização da passado e do presente. A vida de Eusébio, um moçambicano que cresceu nos subúrbios pobres e discriminados de Maputo (então Lourenço Marques),  sugere-nos um olhar sobre o passado colonial português, sobre as suas estruturas concretas e não apenas sobre as imagens de sucesso e mobilidade oferecidas pelo percurso do atleta. Estas imagens, na altura, como hoje, podem esconder mais do que mostrar. O que sabemos nós, hoje, sobre as origens dessa pobreza e da discriminação criadas pelo colonialismo português? A excepcionalidade de Eusébio e do seu reconhecimento, ontem como hoje, não nos pode fazer esquecer a naturalização das diferenças raciais, a propaganda ideológica da integração por via da miscigenação, e a banalização da exploração generalizada nos mundos coloniais, dos subúrbios pobres, donde veio Eusébio.

Por todas estas razões, é importante que o gesto estatal de fazer entrar Eusébio no Panteão não sirva, mais uma vez, para reforçar os velhos mitos do integracionismo português e da pretensa vocação intercultural do sangue lusitano. Isto tanto nos antigos subúrbios das cidades coloniais, como nos bairros que hoje envolvem as cidades portuguesas.

Investigador do ICS-IUL

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