“Ter hepatite C é como carregar um telemóvel durante três dias e a bateria ir-se numa hora”

Paulo Oliveira cruzou-se com a hepatite C em 2007. O primeiro tratamento falhou. Com a chegada em 2014 de um fármaco inovador com taxas de cura superiores a 90% ganhou um novo ânimo, mas que esbarrou no preço: Portugal ainda não aprovou a comparticipação do medicamento, pelo qual o laboratório pede quase 48 mil euros. Por agora, está reservado aos que correm risco de vida. “A minha cirrose ainda não é suficientemente má.”

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Nuno ferreira santos
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As palavras custam a sair até entrarem na cadência certa. Saem com a mesma dificuldade com que Paulo Oliveira deixou Leiria nesta manhã, para se pôr no carro a caminho de Lisboa. Pensou ficar. Várias vezes. Adiar a entrevista e os compromissos, dar ouvidos ao cansaço do corpo de apenas 45 anos. Mas lembrou-se que o cansaço não o larga desde 2007. Nessa altura, o profissional de construção civil, que trabalhava na área de fiscalização de obras públicas, notou que estava diferente. “O meu sistema cognitivo estava bastante afectado. Sentia-me cansado, um cansaço extremo. Estava exausto, deprimido”, conta ao PÚBLICO. As análises pedidas pelo médico de família deram-lhe a resposta: hepatite C.

Os tratamentos para combater o vírus que infecta o fígado e que é transmitido sobretudo por via sanguínea foram feitos apenas em 2012 e falharam. Um novo medicamento que chegou ao mercado em Janeiro devolveu-lhe a esperança. “Fiquei radiante com a possibilidade de cura. Mas o Sofosbuvir custa quase 50 mil euros, vai ser mais uma batalha.” Paulo Oliveira chama-lhe “mais uma batalha” por recordar os “entraves” que encontrou no sistema de saúde desde 2007. Na altura, o médico de família, que se reformou pouco depois, disse-lhe que tinha hepatite C – provavelmente há três décadas. A doença permanece silenciosa durante muito tempo. Mas adiantou que não havia nada a fazer. “Sempre fui saudável e muito activo e de repente disseram-me que ia ficar assim até piorar. Saí perplexo do consultório, meio abananado.”

Num hospital onde deu entrada um ano depois, com uma “compressão no peito”, a resposta foi a mesma. Foi a conjugar o trabalho com os sintomas que Paulo se arrastou mais uns anos, até porque “estava a recibos verdes e não dava para parar”. Agora não consegue mais. “Com hepatite C, no meu caso, um dia normal de trabalho fica reduzido a quatro horas, porque nas primeiras, até eu conseguir arrancar, sinto-me completamente esgotado. Ter hepatite C é como carregar um telemóvel durante três dias e a bateria ir-se numa hora.”

De obra em obra por todo o país, o seu estado de saúde agravou-se e surgiu um outro problema nas cordas vocais, em nada relacionado com a hepatite C. Foi nessa altura que conseguiu, através de um amigo, chegar ao Hospital Pulido Valente, em Lisboa, e ser encaminhado em 2009. Mais uma vez o caso demorou entre Lisboa e Leiria, para onde se tinha entretanto mudado. O tempo passou até fazer em 2012 o primeiro tratamento, quando já sabia mais pormenores. A hepatite C tem algumas variantes e no caso de Paulo corresponde ao chamado genótipo 3, que responde melhor aos tratamentos do que por exemplo o genótipo 1, mas ao mesmo tempo evolui mais rapidamente para cenários como cirrose. O primeiro tratamento falhou e nos inovadores chegados ao mercado, só o medicamento da norte-americana Gilead Sciences, aprovado para a Europa em Janeiro, serve a Paulo. Têm sido 12 meses de espera.

O ano de 2014 ficou marcado pelas tentativas de negociação entre o Ministério da Saúde, a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) e a farmacêutica para tentar chegar a um preço que o Serviço Nacional de Saúde possa pagar. Mesmo a nível internacional os Estados-membros da União Europeia ainda se tentaram unir para uma negociação em bloco, que em nada resultou. Argumentavam com a variação de preços dentro da UE e com o facto de em países com o Egipto o mesmo medicamento ser vendido por menos de 1000 euros.

Do lado do Governo português e do regulador alega-se que o valor é “imoral” e que o Serviço Nacional de Saúde não consegue pagar 48 mil euros, ainda que se diga que já terá baixado para 42 mil euros, garante a SOS Hepatites, uma associação que tem ajudado doentes como Paulo Oliveira a lidarem com a doença e a estarem informados. Perante as taxas de cura do Sofosbuvir, superiores a 90%, o Infarmed definiu em Setembro critérios apertados para dar o tratamento aos doentes em risco de vida e estabeleceu um plano transitório em que cabe aos médicos fazerem um pedido de autorização de utilização especial, analisado à luz das regras temporárias definidas pelos peritos. Seriam tratados 100 a 150 até ao final do ano, mas o número ficará aquém.

Paulo garante que não vê apenas “a própria sombra” e que não ignora os problemas financeiros do país. “Em termos sociais a questão dos custos é muito complicada. É o dinheiro dos seus impostos, mas também é o dinheiro dos meus impostos. Sempre fui uma pessoa sensível ao preço dos medicamentos, tanto que já falei várias vezes com o departamento comercial do laboratório, a pedir atenção aos preços, porque Portugal não é um país rico e as pessoas precisam de ser tratadas. Eles até são sensíveis, mas as respostas são formais porque trabalham com as directivas dos Estados Unidos.”

Como doente, destaca também a estranheza destes 12 meses em que teve de continuar a controlar ao máximo o estilo de vida para impedir o agravamento da doença e, ao mesmo tempo, saber que esse agravamento lhe pode abrir “as portas da morte ou do tratamento”. “A minha cirrose ainda não é suficientemente má”, ilustra, adiantando que passou a ser seguido em Leiria e em Coimbra e que neste segundo hospital o pedido de autorização especial feito pelo médico foi rejeitado por não estar em “perigo de vida imediato”.

Em 2012, altura em que fez o primeiro tratamento, pensa que “já estaria cirrótico” e teme as consequências de tanta espera. A cirrose, uma doença que torna o tecido do fígado fibroso, é uma das complicações que o vírus da hepatite C mais causa e, quando se agrava, pode evoluir para um cancro ou levar à falência total deste órgão. Paulo nunca escondeu a hepatite C de ninguém e garante que, durante os tratamentos semanais injectáveis que se arrastaram por seis meses em 2012, era impossível mesmo que quisesse. A terapêutica tradicional combinada de interferão e ribavirina trouxe-lhe muitos efeitos secundários. “É indiscritível a irritabilidade… o sistema imunitário vai-se abaixo, fica-se anímico. Era tudo o que tinha antes do tratamento por causa da hepatite mas em pior. Não aguentei as mesmas doses até ao fim e precisei de levar plaquetas.” No caso do Sofosbuvir há menos efeitos, o tratamento é menos demorado (12 a 24 semanas) e é em comprimidos.

Na altura da tentativa que falou valeu-lhe a Internet, onde tem aliás procurado muita da informação. Cruzou-se em 2012 com um doente a fazer o mesmo tratamento nos Estados Unidos e a publicar vídeos semanais. “Foi o meu guia para o meu tratamento para perceber que o que estava a passar era idêntico a ele. Ajudou-me a não desistir, assim como a minha família e a minha mulher que me deu muita força.” Seguiu também uma mulher na Austrália mas o silêncio repentino fê-lo perceber qual terá sido o desfecho.

A presidente da SOS Hepatites garante que tem “muitos Paulos” na sua vida, com a agravante deste doente ter o genótipo 3. “O medicamento não é barato mas um transplante, que é a alternativa final, custa entre 100 a 120 mil euros, pode haver rejeição e o doente transplantado tem de tomar imunossupressores o resto da vida”, lembra Emília Rodrigues, sublinhando que “para outras doenças foram aprovados medicamentos tão caros ou mais caros até”.

“Fala-se muito do preço deste medicamento, mas noutras doenças há medicamentos até mais caros. Sinto que estão a discriminar os doentes da hepatite C. O problema é que esta doença é como um muro que não conseguimos transcender. Tentamos chegar às pessoas mas quando se ouve a palavra hepatite ergue-se um muro, porque erradamente se pensa logo em sexo e álcool”, reforça Paulo Oliveira.

Emília Rodrigues lamenta que “só quem está em pré-morte é que tem licença para o medicamento novo” e ilustra que “se aguardarmos que o doente esteja numa fase quase terminal, estamos a tratar pneumonias com paracetamol”. Para a representante dos doentes, o que tem faltado na negociação é um “compromisso claro” de Portugal para tratar “um determinado número de doentes”. Até lá, reforça que doentes e famílias sofrem com os efeitos colaterais, como a “falta de forças, irritabilidade e depressão”. “O doente com a hepatite C é um doente com pavio curto”, resume. Refere-se ao risco de vida na fase final? “Estava a querer dizer que tudo é motivo para discussão, que explodem rápido, é um dos efeitos. Mas sim, o pavio também pode ser a imagem de uma vida a apagar-se contra mais de 40 mil euros.”

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