A lança na City

1. Sócrates. Duas citações de Camus que recolhi num livro surpreendente de Eduardo Graça (2013), Centenário de Albert Camus:

(…) Dilaceração por ter aumentado a injustiça julgando-se servir a justiça. Reconhecê-lo pelo menos e descobrir então essa dilaceração maior: reconhecer que a justiça total não existe. Ao cabo da mais terrível revolta, reconhecer que não se é nada, isso é que é trágico.

(…) Título da peça. A Inquisição em Cádis. Epígrafe: “A Inquisição e a Sociedade são os dois grandes flagelos da verdade” Pascal.

Camus, Caderno n.º 6, Abril 1948 a Março 1951

Visitei José Sócrates, detido em Évora, em prisão preventiva, num dia de sol radioso e frio intenso. Na primeira citação creio que ele se reverá, mas não na expressão “reconhecer que não se é nada”. Na verdade, a forma como pensa, reage e age, em circunstâncias claustrofóbicas, representa tudo menos a perda ou redução da sua identidade. Quanto à segunda frase, sobre a peça que Camus escreveu naquele período, a memória dos “flagelos da verdade” terá que ser eterna, inapagável. Nunca estaremos suficientemente longe dos tempos rudes e perigosos da guerra fria, quando Camus, dissidente precoce do PC, afirmava “o fascismo é a glorificação do carrasco por ele próprio; o comunismo, mais dramático, a glorificação do carrasco pelas vítimas”.

Libertados do fascismo e do comunismo, ao ponto de já quase não os mencionarmos, permanece o contexto que gera inquisições. Acresce a impossibilidade de afastar a política da judicialização, ou vice-versa. Não apenas a política partidária – basta ouvir Marques Mendes e os que se lhe seguirão, ou lerem-me aqui e agora – mas sobretudo a política centrada no poder, sua conquista, afirmação e prática.

2. Ano Velho de má memória. Foi-se. Sem direito a epitáfios. Basta ler as mensagens de Passos Coelho, Portas e Cavaco para se ver que nem a agência trouxe pompas fúnebres. Ficou tudo em casa. A nota positiva na mensagem de quem mais deve foi o alerta para o populismo. Fixado o calendário de 2015, todos vão esperar. Passos espera que Portas reconheça as misérias próprias e exija menos da coligação. Portas espera que Passos enfraqueça internamente e as sondagens lhe mostrem que, sem o parceiro, a direita fenece. O Presidente, escolhido o redondel, espera que a lide decorra consoante o programa, certo de que, por qualquer motivo imprevisto, suspenso ou alterado o espectáculo, não se restitui a importância dos bilhetes. Mantém o trompetista atento, apenas para anunciar a mudança de lide. E mandou recolher a música, por desnecessária. Deixem-me citar Eduardo Graça;

Esperar é deixar o tempo passar, compreender que o tempo não nos espera. Não é o tempo que nos envelhece. O combate da nossa vida não é contra o tempo. É contra nós mesmos. O que somos para os outros e como nos vemos a nós próprios. É como nos sentimos quando nos olhamos ao espelho e nos vemos. Sós. Sem mais ninguém. Ver correr à desfilada as imagens dos que mais amamos. É isso viver. Na fronteira do vazio da vida que não deixa nada para contar. (…) As vidas comuns. (…).Vidas com prazo. Finitas. Escreveu Camus: “a imortalidade é uma ideia sem futuro”. Observação certeira.

Quem pense que basta deixar correr os nove meses que faltam, envelhece mais depressa. Perdeu o combate contra si mesmo, antecipou a perda da imortalidade.

3. Grécia. Pode a Grécia ajudar Portugal? Poderá uma experiência, ao menos diferente da terapêutica habitual, trazer alguma esperança a outros doentes? Poderão os médicos admitir a parte errada do diagnóstico e todo o erro da terapia?

Tantas dúvidas, tantas incertezas! Vamos por partes. Antes de mais, será necessário que o Syriza ganhe as eleições de 25 de Janeiro, o que pode bem ser apenas uma miragem de inverno. Depois, que consiga formar uma maioria, o que já seria uma montanha a vencer. A seguir, que convença os credores a tentar outra terapêutica, o que já será atravessar o Mar Vermelho caminhando sobre as ondas. Depois, que seja possível instalar o Rei Salomão na presidência do ECOFIN. Trabalhos de Cíclope, que podem degenerar em Sísifo. Muita coisa, mesmo para o país da mitologia, da filosofia e da democracia.

Seria pelo menos interessante que os pressupostos do erro europeu fossem questionados. Que o BCE, finalmente disposto a injectar liquidez nos mercados para tamponar o esgoto da deflação, o conseguisse. Que os credores levassem a sério os economistas gregos autodenominados de marxistas, e aceitassem negociar inovações em troca da conclusão de reformas apenas esboçadas. Que o Syriza convencesse os seus militantes a tais reformas, o que parece hoje mais difícil que convencer a Europa. Coragem e arreganho não lhe faltaram e até duas reuniões com grandes credores já abriram espaço negocial. Incidentalmente, teríamos nós “unhas” para cravar uma lança na City?

Professor catedrático reformado

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