Jorge Meireles, um coleccionador de literatura: “Não estou sozinho neste mundo”

Jorge Meireles tem primeiras edições, livros raros, alguns únicos, com dedicatórias. É um coleccionador de literatura, isto é, uma espécie de leitor profissional, levando o acto da leitura o mais longe possível.

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Nelson Garrido
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“It was a queer, sultry summer, the summer they electrocuted the Rosenbergs, and I didn’t know what I was doing in New York.” (“Era um Verão abafado, estranho, o Verão em que electrocutaram os Rosenberg, e eu não sabia o que estava a fazer em Nova Iorque.”) As primeiras frases de um livro são sempre fundamentais e o começo de The Bell Jar (em Portugal editado com o título A Câmpanula de Vidro) é inesquecível e, logo, reconhecível. O que talvez tenha ficado esquecido é que a escritora americana Sylvia Plath inicialmente não assinou o livro com o seu próprio nome, mas com o pseudónimo Victoria Lucas. Era um romance tão autobiográfico que Plath não queria que afectasse nenhuma das pessoas em quem se baseavam várias das personagens e que ainda estavam vivas.

A primeira edição do livro, publicada em Janeiro de 1963, em Londres, pela editora William Heinemann Ltd., tem na capa uma mulher sentada a uma mesa, envolta numa redoma de vidro, que faz lembrar a tampa de uma travessa de bolos enorme e circular. É a história de uma jovem mulher da província que chega a uma grande cidade e, no entanto, sente-se fechada nela. O próprio mundo pode ser uma redoma e Sylvia Plath, poucas semanas depois da publicação de The Bell Jar, suicidou-se, ligando o forno a gás, depois de ter selado a cozinha e deixado leite e biscoitos à porta do quarto dos filhos.

Há uma emoção em aproximarmo-nos das histórias de certos livros e de determinados autores. Que essa aproximação chegue a ser uma coisa física é algo comovente e parece estar reservado apenas a alguns leitores: aqueles que passam de simplesmente ler, para ler tudo o que rodeia a primeira leitura e, depois, para possuir os objectos que tornaram possível aquela primeira leitura e a iluminam.

Jorge Meireles é um desses leitores. “Leitor” é realmente a palavra certa. Talvez um coleccionador de literatura seja o leitor profissional, aquele que leva o acto da leitura o mais longe possível.

Só nos primeiros instantes é estranho estar numa divisão de um apartamento incaracterístico no centro do Porto a segurar nas mãos a primeira edição do único romance de Sylvia Plath. Ao fim de algum tempo a ouvir Jorge Meireles, parece de certa forma natural que nesta casa se possam tocar em primeiras edições de Paul Bowles ou de Aldous Huxley, ver uma colecção extraordinária de primeiras edições de Thomas Bernhard em alemão ou as edições originais da tetralogia Mar da Fertilidade (Neve de Primavera, Cavalo Selvagem, O Templo da Aurora e A Queda do Anjo), de Yukio Mishima, que Jorge Meireles mandou vir do Japão, embora não possa ler em japonês, porque para ele a admiração expressa-se no querer chegar mais perto da fonte. (Mishima, explica Jorge Meireles, tinha como um dos temas da sua obra precisamente a questão da origem e da impossibilidade de lá chegar. “Não se consegue, é evidente”, diz Meireles, “mas faz-se uma aproximação.”)

Depois, tem uma colecção impressionante de primeiras edições de autores portugueses: dos poetas modernistas ou surrealistas, que nunca conheceu, a poetas seus contemporâneos, com quem fez amizade, como Manuel António Pina ou Jorge Sousa Braga. Tem uma colecção única das edições dos anos 80 da editora Fenda, que para ele marcaram uma época importante que viveu. Tem livros autografados pelos autores para ele próprio, tem livros com dedicatórias dos autores para familiares, dedicatórias privadas que revelam segredos aparentemente mínimos mas afinal significativos. Tem cartas de autores portugueses e alguns manuscritos, que guarda sabendo exactamente o que guarda, com um quase sentido de missão. É um guardião, não só daqueles objectos, mas já de uma ideia de literatura.

A sua biblioteca não é muito grande em tamanho – aquilo a que ele chama “núcleo duro” cabe em duas estantes e dois móveis de gavetas –, mas é um lugar de comunicação com outros lugares e mesmo outras épocas: ter uma edição publicada em vida de um autor que já morreu é uma forma de contacto com outro tempo. “Contemporaneidade” é a palavra que usa, citando um termo utilizado por Vergílio Ferreira num texto sobre o assunto. “O que se está a comprar quando se compra uma primeira edição é a contemporaneidade com o tempo da vida do autor”, diz Meireles.  

A sua biblioteca é uma espécie de casa de partida do jogo da vida ou de segundo coração, de onde bombeiam os seus caminhos, porque um leitor verdadeiramente apaixonado não fica meramente sentado com os livros.

Uma vez, e não é importante saber se isso aconteceu antes ou depois de ter comprado a primeira edição de The Bell Jar, estava em Liverpool e, sem o ter planeado previamente, decidiu ir até Heptonstall, onde está enterrada Sylvia Plath. Fica na região de Yorkshire, perto de Mytholmroid, onde nasceu Ted Hughes, o poeta inglês que foi casado com Sylvia Plath, e quase ao lado de Lumb Bank, uma casa que pertenceu a Hughes e onde hoje funcionam cursos de escrita da Fundação Arvon, de que o poeta foi um dos fundadores. Sylvia Plath está enterrada no cemitério da igreja de Heptonstall. Jorge Meireles foi até lá a um sábado à tarde, subiu a rua para a igreja de Heptonstall e quando chegou ao cemitério, ao olhar para a quantidade de túmulos, pensou que seria impossível descobrir a campa de Plath. Depois, reparou num grupo de jovens em redor de uma campa. “Em qualquer altura, em qualquer dia, em qualquer hora e em qualquer lugar, há sempre gente que se dá ao trabalho de ir ver coisas como uma campa de uma escritora. Aquelas pessoas estavam ali. Eram novinhas e estavam lá a ver aquilo. E pensei: não estou sozinho neste mundo.”


Dedicatórias

Jorge Meireles almoça todos os dias num café/cervejaria no centro do Porto. Tem sempre uma mesa reservada e regularmente juntam-se a ele outros coleccionadores, que, embora construam colecções parecidas com a sua e procurem livros da mesma época – de finais do século XIX até aos anos 80 do século XX –, se tornaram companheiros mais do que rivais.

A conversa começou ao almoço, nessa cervejaria, e acabou num café perto de sua casa, depois de várias horas passadas na sala dos “tesouros”. Só no final é que falámos sobre o princípio e Jorge Meireles contou que talvez se tenha tornado coleccionador por volta dos 11 ou 12 anos, quando entrava nas livrarias, scanando as prateleiras por lombadas castanhas, para encontrar os livros das Aventuras de Miguel, de Georges Bayard, publicados pela Editorial Verbo. Ainda em criança comprou e leu todos os livros do Miguel, excepto um, que sempre o iludiu. Encontrou-o há um mês e, embora saiba que não o lerá, teve de o comprar. Mais de 40 anos depois, completou a sua primeira colecção.

O coleccionador é um bicho raro, mestre nas difíceis artes da paciência e da persistência. Demorou, por exemplo, 25 anos para encontrar um livro de 1985 que completa a colecção dos primeiros anos da editora Fenda: Arbeit macht frei, de Alice Corinde, que Meireles pensa ser um pseudónimo de Júlio Henriques.

Depois, o coleccionador nunca deixa de o ser, não tem dias de folga. Durante muitos anos, foi para a Feira do Livro do Porto com sacos de volumes para serem assinados pelos autores que estivessem pela feira. Um ano soube que estava lá o Manuel da Fonseca, de quem tem quase a colecção completa, e foi com o saco de primeiras edições. Quando chegou à sua vez da fila, estendeu a Manuel da Fonseca a primeira edição do primeiro livro que ele tinha publicado.

"Isto foi há 50 anos" – disse o Manuel da Fonseca, comovido.

A mulher dele, que estava sentada ao lado, disse:

"Sabe, ele não tem esse livro."
"Então, se não tem, eu ofereço-lhe" – respondeu Meireles.

Manuel da Fonseca recusou a oferta, e, como dedicatória, escreveu: “Para Jorge Meireles, grato por me conceder que assine este livro que não tenho e os cordiais cumprimentos.” Está assinado e datado de 9/6/1990, que calhava ser o dia de aniversário de Jorge Meireles.


A moeda do Tio Patinhas

Jorge Meireles parece ter conservado a capacidade de sistematização que se tem na infância. Uma sistematização que não nasce de um esforço de organização, mas apenas do desejo de continuar a descobrir um mundo, uma vez que se abriu uma porta para ele. Já mais velho e estudante, quando descobria um autor que o apaixonava, lia-o de seguida. Foi o que lhe aconteceu com Thomas Bernhard, quando estava na Alemanha a tirar um curso de Gestão. Começou pelos quatro volumes da autobiografia e em seguida foi ler, de uma assentada, vários livros de Bernhard. Depois, foi um dos autores sobre o qual quis saber tudo. Só sabendo muito sobre um autor se pode olhar para uma primeira capa de uma primeira edição de um primeiro livro e ver, no negro total, o luto que perseguia Bernhard.

Jorge Meireles acredita na capacidade de conhecimento do amador, embora não utilize esta palavra: “amador”. Acredita que a sensibilidade para mergulhar inteiramente num autor e ver o que não tinha ainda sido visto pode vir de qualquer leitor.

Thomas Bernhard, diz, não tinha particular interesse ou admiração pela academia e por isso deu-lhe um certo gozo quando emprestou livros para uma exposição e participou num ciclo dedicado ao autor alemão, no CCB, e, no meio de um dos debates, teve a oportunidade de frisar que ele, que tanto tinha lido Bernhard, não era um investigador, mas apenas um leitor. “Estavam a tratar-me por ‘professor isto, professor aquilo’”, conta. “E eu disse: ‘Desculpe, há aí uma confusão: eu não sou professor de nada, sou vendedor de aquecedores.”

Jorge Meireles, vendedor de aquecedores, vai a uma das estantes de vidro buscar o que chama “jóias da coroa” e traz duas caixas de madeira com dois livros de Florbela Espanca, onde se pode ver manuscrita a letra delicada da poeta. Lê a dedicatória de um livro e depois a do outro, dedicatórias ao mesmo homem, o segundo marido de Florbela Espanca, o alferes António Guimarães. “Penso que foi a grande paixão dela”, diz. “Mas parece que ele tinha mau feitio.” Jorge Meireles observa as escolhas das palavras e como se vê, de uma dedicatória para a outra, a passagem de um amor. Uma delas é quase desesperada de paixão e a outra tem um tom quase de despedida.

Estes dois livros e outros raros e únicos que tem – porque um livro com dedicatória é sempre único – são o culminar de um longo percurso como coleccionador. “Vai-se apurando... E depois chega-se a uma altura que é como o ópio: não satisfaz.”

Ainda se lembra perfeitamente do primeiro livro “caro” que comprou aos vinte e tal anos: uma primeira edição do Clepsydra, o único livro de Camilo Pessanha, que lhe custou 15 contos e que mandou logo encadernar. “Foi uma espécie de moedinha número um do Tio Patinhas.” Um dia, ofereceu essa edição da Clepsydra a uma pessoa que lhe pareceu que iria apreciá-la mais do que ele mesmo, porque sabia que já não precisava de um amuleto para continuar.

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