Olhar o sagrado

Tão alto quanto os olhos alcançam cruza peças de arte contemporânea e de arte sacra, estas últimas provenientes da Diocese de Évora. O conceito não é novo, mas os resultados são gratificantes.

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Elch, de Joseph Beuys ANTÓNIO JORGE SILVA
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Sem Título #810, de Fernando Calhau PAULO COSTA
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Transcendentalism, de Jack Pierson COLECCIÓN HELGA DE ALVEAR
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Agnus Dei, de Josefa de Ayala
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Vista da exposição JERÓNIMO HEITOR COELHO/FUNDAÇÃO EUGÉNIO DE ALMEIDA

A opção pela conjunção de obras de arte contemporânea e outras de arte antiga, como sucede neste Tão alto quanto os olhos alcançam que agora decorre no Forum da Fundação Eugénio de Almeida, em Évora, não é inédita. Para nos cingirmos apenas a exemplos que incluíram arte sacra, houve em 2007 uma outra exposição, No caminho sob as estrelas, na Matriz de Santiago do Cacém, que incluía parte do riquíssimo espólio da arquidiocese de Beja relativo ao culto de São Tiago e obras actuais, nomeadamente uma figura em tamanho natural do santo assinada por Joana Vasconcelos. Mais tarde, a Capela do Rato iniciou também um projecto de decoração por artistas contemporâneos que intervieram no espaço neoclássico do templo. Ainda mais recentemente, no Verão passado, Do sagrado na arte ocupou diversos espaços da capital, religiosos ou não. Pediu-se então a um leque alargado de artistas que trabalhasse as narrativas dos Evangelhos.

 

Estes exemplos poderiam completar-se com toda uma série de iniciativas que conjugam diferentes épocas e autores no mesmo espaço. Há qualquer coisa da colecção warburgiana nesta montagem, e não só: testemunha evidente de um tempo pós-moderno que não renega a arte do passado, ela permite toda a espécie de associações temáticas e formais. Quando o acervo de base, sobre o qual o curador pretende trabalhar, é constituído por arte sacra – ou seja, toda a produção artística que se insere no culto privado ou público , que se pretende pôr a dialogar com a arte contemporânea, esta dificuldade é acrescida. É que, como bem afirma Delfim Sardo, que assina a exposição, e embora a arte sacra nunca tenha desaparecido, “a arte a partir do modernismo foi perdendo a noção da transcendência em favor de uma missão derrisória e enfeudada às questões da crítica e das suas condições de possibilidade enquanto arte”, mesmo que exista, “na arte contemporânea, uma clara nostalgia em relação a uma capacidade de se dirigir a zonas mais densas da nossa relação com o mundo”. Decorre daqui uma definição de transcendência como “aquilo que nos ultrapassa”, e uma selecção lata de artistas  contemporâneos: não aqueles que trabalham ou já trabalharam arte sacra (Lourdes Castro, por exemplo, ou Pedro Calapez), mas aqueles que manifestam mesmo na sua obra essa nostalgia, que é afinal romântica, de uma ligação com o que, para muitos, é manifestamente não a transcendência mas a interrogação da transcendência.


O divino e o terreno

E esta constatação manifesta-se logo à partida numa conjugação de peças que, quase sistematicamente, dá o mote a toda a exposição. Numa sala do piso térreo, uma grande estátua de São Miguel isola-se, dramaticamente iluminada. Ao lado, numa segunda sala, uma rapariga canta uma canção de amor de pé, num buraco escavado no chão de um jardim, instaurando uma clara associação com uma campa. Um anjo que voa, uma sepultura: a segunda peça, de João Onofre, acentua através do contraste a disparidade entre um alto, lugar do divino, e um baixo, lugar do terreno – do corpo – que condensa a nostalgia de que Sardo falava.

No piso superior distribuem-se as restantes peças. David Hammons, Josef Beuys, Francisco Tropa, Rui Chafes, Croft, João Queiroz, Jack Pierson, Jeff Wall, Biberstein, Tacita Dean, Calhau, Ana Mendieta, Cildo Meireles, Gonzalez-Torres, Gober, Cabrita e Balkenhol estabelecem diálogos ricos com a estatuária votiva, os panos de altar ou de cerimónia e a pintura que a Fundação Eugénio de Almeida fez restaurar para a Diocese de Évora. Com frequência, as associações são formais: uma camisa de dormir manchada e um roupão, de Hammons, convivem na mesma sala com frontais de altar, capas e outros têxteis litúrgicos; uma fotografia de Ana Mendieta deitada sobre a terra não está longe de um Cristo deitado, tal como um A alma, prisão do corpo, de Rui Chafes. Noutras ocasiões, é a própria presença e a iluminação contrastante que salientam a obra contemporânea, como o enorme fardo de palha de Cildo Meireles, rodeado por fio dourado e no meio do qual está uma agulha.

Na exposição há pouco lugar para o vazio, para a abstracção. E é bem que assim seja. É que toda a arte sacra cristã e, depois da Reforma protestante, católica, exalta o corpo. Não apenas o corpo supliciado, mártir, sacrificado, mas o corpo comum, vulgar, santificado pela graça, como Caravaggio, noutras latitudes, tão bem o fez. Só por aqui se compreende a associação formal entre obras de diferentes tempos. Só por aqui se compreende também a presença da abstracção apenas enquanto devedora da apropriação do sublime romântico, que mais não é do que essa nostalgia de que a exposição é devedora. É o caso de Calhau e de Biberstein, mas também de João Queiroz, que criou um surpreendente tríptico associado aqui a um abraço entre Santa Ana e São Joaquim de gosto popular. Queiroz é um dos dois artistas que foram convidados a criar obras específicas para a exposição. O outro é José Pedro Croft, que condensa esta presença obsessiva do corpo tanto na arte sacra como na arte contemporânea. Numa peça feita de espelhos inclinados, reflecte duas pequenas estátuas da Pietá, ao mesmo tempo que nos inclui a nós, espectadores, na escultura que criou.

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