O sistema financeiro precisa de ajuda psicológica?

O debate em torno dos impactos da crise financeira ao nível da saúde psicológica e geral tem impossibilitado discutir-se um outro problema: a necessidade de ajuda psicológica do sistema financeiro.

A crise financeira global tem sido de tal forma responsável por vidas interrompidas, pela destruição de famílias e pela ruptura das estruturas sociais de apoio, que as suas causas devem ser permanentemente objecto de estudo e reflexão. Porém, o debate em torno dos impactos da crise financeira ao nível da saúde psicológica e geral tem impossibilitado discutir-se um outro problema: a necessidade de ajuda psicológica do sistema financeiro.

Há hoje quatro áreas fundamentais de apoio psicológico aos sistemas financeiros: promoção da literacia financeira; consultoria e aconselhamento na criação e desenvolvimento da arquitectura dos sistemas financeiros; explicação dos mercados e do funcionamento da economia; e avaliação e promoção de locais de trabalho saudáveis.

No que diz respeito à promoção da literacia financeira, é necessário sublinhar que o Banco de Portugal lhe dedicou um estudo em 2010. Daqui resultou que 79% dos inquiridos não conheciam o Portal do Cliente Bancário e que cerca de 50% não conseguiam avaliar o risco do seu depósito bancário. Foi então criado um Plano Nacional de Formação Financeira e um portal: todoscontam.pt. A medida, genericamente positiva, continha um módulo de risco no qual, incompreensivelmente, não se consideravam as dimensões psicológicas que aumentam os riscos a que estão sujeitos os consumidores de produtos bancários. Diversos estudos na área científica da Psicologia permitem compreender a influência de factores psicológicos nos processos de tomada de decisão financeira e nos riscos que lhe estão associados. A título de exemplo, pensemos no risco e nas consequências potencialmente desastrosas da preferência do consumidor por recompensas a curto prazo (desvalorizando os benefícios a longo prazo) ou do excesso de confiança no futuro. Paralelamente, é difícil entender por que não se usam os conhecimentos da Psicologia — utilizados pelos bancos e outros operadores para vender produtos financeiros — com o objectivo de esclarecer e proteger os consumidores, promovendo a sua literacia financeira e uma tomada de decisão mais consciente, informada e capaz.

No que se refere à arquitectura do sistema financeiro, a integração de psicólogos e da economia comportamental nas autoridades reguladoras poderia ajudá-las a exercerem a sua função de forma mais eficaz. O seu papel na identificação e priorização de riscos para os consumidores geraria impactos significativos na qualidade e eficiência da regulação. Por exemplo, nos erros por confiança excessiva (pela adopção de medidas que orientassem o consumidor a perspectivar como poderá lidar com as responsabilidades futuras num crédito), no desenho de intervenções eficazes ao nível da metodologia de regulação ou no desenho dos quadros comunicacionais com os clientes (garantindo uma arquitectura de escolhas que permita que as opções mais favoráveis ao cliente sejam as mais destacadas). Ainda nesta matéria, também ao nível do endividamento, os psicólogos poderiam intervir, trabalhando em problemas relacionados com a contracção de dívida e com os impactos psicológicos da mesma.

Relativamente à explicação dos mercados e do funcionamento da economia, a Psicologia tem produzido muitos estudos na área da desonestidade. Recentemente foi publicado na Nature um estudo que defende que a cultura prevalecente nas instituições bancárias enfraquece e corrói as normas de honestidade. A mudança na cultura organizacional é, por isso, urgente e passa por alterações estratégicas que apontem para um desenvolvimento organizacional preventivo no qual o contributo dos psicólogos é imprescindível. Aliás, este contributo não é apenas recente, a Psicologia há muito que tem um papel central no desenvolvimento das ciências económicas. Veja-se, a título de exemplo, a importância do trabalho do psicólogo Daniel Kanhneman (Prémio Nobel da Economia em 2002) em torno das heurísticas de decisão. No entanto, como tem defendido Robert Shiller (Prémio Nobel da Economia em 2013), o papel da Psicologia nem sempre é reconhecido, o que talvez ajude a explicar o facto de os estudos de Dan Ariely que validam que os seres humanos têm propensão para enganar ou fazer batota até um nível que lhes permite manter a auto-imagem de razoavelmente honestos, impedindo níveis mais elevados de criminalidade, não sejam particularmente considerados pelo sistema financeiro. Isto porque, se a cultura organizacional existente no mundo financeiro for, como referido acima, “corrosiva” do conceito de honestidade, este nível para a manutenção da auto-imagem tenderá a ser já demasiado elevado. O mesmo se passa com a percepção de justiça nos crimes de colarinho branco na medida em que influencia determinantemente a avaliação que cada um faz das probabilidades e custo-benefício de um certo comportamento desonesto. Se adicionarmos a isto a existência de perfis mais criativos, aumentamos o risco, pelo que a avaliação destes perfis na banca é também essencial. Existem ainda estudos relativos à aversão à perda e ao facto de as pessoas não gostarem de perder, mesmo que estejam a perder “desde o século passado”, continuando a pensar no que poderão reconquistar a partir das suas perdas, possibilitando assim um exercício de perdas contínuas. Finalmente, o conhecimento psicológico diz-nos que, quanto maior a distância ao “dinheiro real”, maior a probabilidade de comportamentos desonestos e, hoje em dia, a distância ao dinheiro (ao “vil metal”) no sistema financeiro é enorme (por oposição à utilização de “zeros” e “uns” em computadores).

Por último, os sistemas financeiros precisam de apoio psicológico a um nível mais individual, uma vez que a área financeira é sujeita a riscos psicossociais gerais (comuns a outras áreas) mas também a riscos muito específicos, associados a um stress muito elevado em muitas funções, e que podem levar a comportamentos de risco como o consumo (excessivo) de determinadas substâncias ou mesmo o suicídio. A falta de contacto com o “mundo real”, decorrente das características de alguns destes contextos, contribui para a exponenciação dos riscos financeiros das instituições onde desempenham as suas funções. Em Portugal, mas não só, muitas destas situações podem descrever-se como tendo origem numa pressão enorme causada por orientações superiores desajustadas da realidade, no nível de competição, na falta de protecção face a reacções de clientes insatisfeitos com as suas perdas e na exigência de envolvimento intelectual e emocional muito elevado, forçando a procura de complementos que permitam manter os níveis de atenção, alerta e esforço para atingir resultados.

Os bancos precisam de testes de stress, sim. Mas precisam também de outro tipo de testes de stress, isto é, de uma avaliação dos riscos psicossociais nos locais de trabalho, que permita determinar as necessidades de intervenção psicológica.

Por estes motivos, o sistema financeiro precisa de ajuda psicológica, sim.

Director executivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses

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