Gabriel García Márquez encontrou finalmente a sua casa: fica em Austin, Texas

O espólio do Nobel da Literatura colombiano chegou este mês ao Harry Ransom Center, onde estará em condições de ser consultado dentro de dois anos. Entretanto, ficará na ilustre companhia de perto de 40 mil manuscritos – assinados James Joyce, Samuel Beckett, Jorge Luis Borges e Norman Mailer.

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Gabriel García Márquez editava-se a si próprio de modo obsessivo, como demonstram os documentos agora depositados na Universidade do Texas
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O Harry Ransom Center da Universidade do Texas, em Austin
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Gabriel García Márquez na sua casa da Cidade do México
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Guarda de honra à porta da residência do escritor na Cidade do México, depois do anúncio da sua morte BERNARDO MONTOYA/REUTERS
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Admiradores do escritor no funeral simbólico de García Márquez diante da casa onde passou a infância em Aracataca, na Colômbia

Até chegar ao Harry Ransom Center da Universidade do Texas, onde desfilou por uma passadeira vermelha no passado dia 16 de Dezembro, tudo o que Gabriel García Márquez (1927-2014) arquivou ao longo de uma vida inteiramente dedicada à escrita teve de percorrer os 1211 quilómetros que separam a Cidade do México, onde viveu os seus últimos anos, e a cidade de Austin, no Texas, que em Novembro anunciou finalmente ao mundo ter adquirido todo o impressionante espólio do Nobel da Literatura colombiano.

Ao todo, a colecção Gabriel García Márquez, arquivada em 40 caixas de madeira cobertas por papel celofane e dispostas sobre duas grandes paletes de madeira, ocupa 2,6 metros cúbicos do Harry Ransom Center. Foram necessários 18 funcionários para abrir, inventariar e voltar a fechar o arquivo, que demorará um ano a ser catalogado e mais dois a ficar em condições de ser mostrado e consultado pelo público, académico e não-académico, que frequenta aquela que é já a instituição de referência para os estudos latino-americanos. Porquê o Texas? Porque ao longo dos últimos 50 anos o Instituto Teresa Lozano de Estudos Latino-Americanos (LLILAS) investiu milhões de dólares na criação de um arquivo único no mundo, composto por dezenas de milhares de manuscritos assinados por escritores como Samuel Beckett, Jorge Luis Borges ou Norman Mailer. Ali se conservam, entre outros bens que são património material da Humanidade, uma das únicas cinco bíblias completas de Gutenberg que se encontram em solo norte-americano, três cópias do primeiro Folio de William Shakespeare e todo o espólio de James Joyce. E ali passarão a estar também os papéis que García Márquez guardou até ao fim na sua casa de México D.F., onde morreu a 17 de Abril do ano passado aos 87 anos, juntamente com os seus objectos pessoais, passaportes, correspondência, álbuns de fotografias e três computadores Macintosh cujo conteúdo ainda não foi devidamente explorado.

O espólio do escritor colombiano, adquirido finalmente à família a 24 de Novembro último depois de uma longa negociação iniciada meses antes da morte de García Márquez e intermediada pela Universidade do Texas, permitirá a todos interessados mergulhar a fundo no febril processo de composição literária do Nobel da Literatura, e testemunhar o modo obsessivo como se editava a si próprio. Entre os documentos agora depositados no Harry Ransom Center estão uma primeira cópia do romance Cem Anos de Solidão, com que fez a sua fulgurante estreia literária em 1967, o rascunho do discurso com que aceitou o prémio atribuído pela Academia Sueca em 1982, várias versões retrabalhadas de Crónica de Uma Morte Anunciada e de Amor nos Tempos de Cólera, o manuscrito inacabado do seu último romance, En Agosto Nos Veremos, e toda a documentação sobre Símon Bolívar que García Márquez reuniu, e laboriosamente anotou, para escrever O General no Seu Labirinto. Uma "colecção verdadeiramente excepcional", que o director do centro, Stephen Enniss, pretende disponibilizar "o mais rapidamente possível" aos cerca de dez mil investigadores que frequentam anualmente a sala de leitura do Harry Ransom Center. Enniss, que guiou o El País numa visita ao depósito da instituição apenas um dia depois da chegada a Austin do tesouro García Márquez, está convencido de que a nova aquisição faz do Harry Ransom Center "um autêntico mausoléu das humanidades".

Mesmo antes desta última golpada, o Harry Ransom Center já estava em condições de se afirmar como o umbigo do mundo literário, pelo menos no continente americano. Entre os documentos que ali se encontram depositados estão obras-primas literalmente maiores do que a vida como o primeiro rascunho de Watt, de Samuel Beckett, a primeira versão do capítulo inaugural de Morte na Tarde, de Ernest Hemingway, e quatro versões diferentes de A Vida e o Tempo de Michael K., do sul-africano J.M. Coetzee, que doou em vida todos os seus documentos à instituição. Tal como ele, também Norman Mailer começou a negociar o depósito do seu arquivo no Harry Ransom Center dois anos antes de morrer; o mesmo fez o actor Robert De Niro, que vendeu por quatro milhões de dólares 1.300 caixas de memorabilia que tinha em casa, incluindo guiões anotados, fotografias com provas de maquilhagem, dezenas de figurinos e a licença de taxista que teve de tirar para filmar Taxi Driver, um dos mais seminais papéis da sua carreira. Mas é também em Austin, no Texas, que podem consultar-se alguns ficheiros secretos do jornalismo de investigação norte-americano, a começar pelos blocos de notas que os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein usaram durante o caso Watergate.

Proibido durante décadas de entrar nos Estados Unidos devido às suas simpatias comunistas, Gabriel García Márquez faz agora a sua entrada triunfal na colecção por um valor que as partes envolvidas preferem não divulgar, a menos que a isso venham a ser obrigadas pelas leis de transparência fiscal em vigor no Texas. Qualquer que tenha sido o preço, imaginamos, terá sido um preço justo: menos não estaria à altura de um acontecimento tão memorável como está já a ser esta chegada ao panteão.

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