Passar poesia entre grades

Filipe Lopes inebria os presos com poesia. Florbela Espanca, Pessoa, José Luís Peixoto, Gedeão. E lê poemas de amor “porque eles precisam de falar nisso”. “Eles” são reclusos hoje, homens e mulheres livres amanhã.

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“A única forma de eu conseguir ser justo e honesto é não fazer juízos sobre a pessoa que tenho à minha frente”, diz Filipe Lopes. Enric Vives-Rubio

Na entrada, Filipe Lopes é revistado, deixa carteira, telemóvel e quase tudo o que traz. Para dentro da prisão apenas leva livros. Transpõe um portão, depois outro e outro, passando poesia por entre pesadas grades. Foi assim a primeira vez, em 2003, quando teve apoios da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas (antigo Instituto do Livro) para lançar a iniciativa A Poesia não tem Grades do Grupo O Contador de Histórias, associação que criou.

Nessa altura, começou por levar ao Estabelecimento Prisional de Sintra e à prisão feminina de Tires aquilo que então já levava (havia mais de 20 anos) a escolas, bibliotecas, hospitais – “Sempre tive essa preocupação de levar o livro e a leitura a todas as pessoas”, diz Filipe Lopes.

Continua a ser assim mais de dez anos depois, agora que percorreu quase todos os estabelecimentos prisionais do país – sem nenhum (ou quase nenhum) apoio desde 2009. “Quando deixei de ter apoios, achei que devia continuar. Achei que valia a pena ser voluntário.” Por algo em que acredita. “Se 1% da população prisional se sentir bem dentro da prisão, já é bom.” Os presos são pessoas que um dia estarão em liberdade, enfatiza. “As pessoas esquecem-se disso.”

Durante a sessão, fica numa sala com 20 reclusos (ou menos ou um pouco mais). “Eu não sei quem são, nem as penas que cumprem, nem quais os crimes. Sentir-me-ia muito condicionado. Prefiro não saber a razão por que estão lá. Para fazer este trabalho, temos de estar desapegados dos nossos preconceitos.” E insiste: “A única forma de eu conseguir ser justo e honesto é não fazer juízos sobre a pessoa que tenho à minha frente”.

São condenados de todo o tipo: por pequenos furtos ou, a maioria, crimes relacionados com droga, mas também condenados por pedofilia, violação, homicídio e crimes financeiros. Filipe Lopes, que é formado em Psicopedagogia, conheceu todo o tipo de prisões: regime aberto ou semiaberto, média, alta segurança. Ou muito alta segurança como Monsanto, onde, numa das sessões, teve de descer vários lances para chegar a uma sala subterrânea onde estava um pequeno grupo apenas. “Era um sítio onde só podiam estar cinco pessoas de uma vez.”

E no entanto, a entrega deles, aqui, foi muito mais positiva do que em prisões, com menos restrições, onde encontrou um ambiente pesado e pouca receptividade; por exemplo em cadeias onde reconheceu, no grupo, figuras públicas. Estas pessoas participam porque querem mas não se envolvem da mesma maneira nas sessões de poesia. “O grau de frustração é muito maior para pessoas que antes viviam longe de imaginar que um dia seriam presas. Não lidam bem com a situação”, diz Filipe Lopes. Assim explica “o clima pesado” encontrado nestes casos.

O vício da leitura
Durante as sessões, uns partilham o que lhes aconteceu e a razão por que estão ali. Como um rapaz muito novo – de 18 ou 19 anos. Depois de ouvir Embriaga-te de Baudelaire ("Com vinho, com poesia ou com a virtude, a teu gosto. Mas embriaga-te", do Spleen de Paris), quis partilhar a sua história.  

Contou por que estava na prisão – uma questão relacionada com consumo ou tráfico de droga – e que aí tinha ganho outro vício. O vício da leitura. “Ele dizia que através da leitura tinha sentido sensações semelhantes às que costumava sentir quando tomava estupefacientes”, relata Filipe Lopes. E defende os livros nas prisões como uma ferramenta tão necessária como outras, na sociedade. “Somos poucos a intervir no meio prisional”, responde a quem o desafia a justificar este cuidado com presos quando, lá fora, cada vez mais gente vive a precisar de ajuda: velhos, crianças, vítimas de violência.

Não havendo, em Portugal, prisão perpétua, na cadeia estão pessoas que um dia vão sair em liberdade, lembra. “O recluso de hoje é o nosso vizinho de amanhã”, costuma dizer. “A prisão não lhes dá as ferramentas que lhes deveria dar. As pessoas esquecem-se mas na prisão muitas pessoas terminam um curso superior, ou aprendem a ler e a escrever. É muito importante aproveitar esse tempo na prisão para se tornarem pessoas melhores. Para algumas pessoas, é uma oportunidade de se escolarizarem, de contactarem com o meio artístico.” Para os que participam nas suas sessões, é uma oportunidade de se reverem nas palavras e nos livros, de se identificarem, e verem além dos muros que os cercam.

Ser Poeta de Florbela Espanca. Sophia de Mello Breyner e Pessoa. Gedeão e a sua Lágrima de Preta, ou os cinco à mesa no poema sem nome de José Luís Peixoto – “Cada um deles é um lugar vazio nesta mesa onde como sozinho.” Depois deste “murro no estômago”, diz Filipe Lopes, que leva alguns a verterem lágrimas, há espaço para poemas de amor “porque eles precisam de lidar com esta questão”. O alinhamento “está construído de forma a ser uma montanha russa de emoções”. “Todos os poemas têm um objectivo”, diz Filipe Lopes.

Nos 60 a 90 minutos que pode durar uma sessão, e “para mostrar que com poesia também há riso”, pode ouvir-se A Bunda, que engraçada de Carlos Drummond de Andrade. E quando, na sala, estão guardas, ficam instintivamente em sentido quando ouvem "Avisam-se todas as polícias, fugiu um homem", durante a leitura de Chamada geral de Mário-Henrique Leiria.

Se está presente uma técnica da prisão, Filipe Lopes escolhe ler Todos os homens são maricas quando estão com gripe de António Lobo Antunes, que Vitorino pôs em canção. “Desmonto a ideia de que a poesia é difícil de compreender", diz Filipe Lopes. E mostra aos que o escutam que um poema pode ser uma canção, como também acontece com Ser Poeta ou Lágrima de Preta.

Manter o projecto em 2015
Para cumprir o objectivo em 2015 de garantir 50 sessões em ambiente prisional – entre sessões continuadas (com os mesmos reclusos) ou sessões pontuais – e continuar a formar novos voluntários que assegurem a iniciativa nas suas áreas de residência, em vários distritos, Filipe Lopes lançou uma campanha de crowfunding (até 5 de Janeiro) na qual apela a empresas ou particulares a apoiar esta iniciativa através do site http://ppl.com.pt/pt/causas/a-poesia-nao-tem-grades. Um livro, com textos de autores como Afonso Cruz, Alice Vieira ou Richard Zimler, será lançado em Janeiro em todo o país, revertendo os benefícios a favor da iniciativa.

Uma iniciativa a que se dedicou, mesmo sem apoio. Ao fim deste tempo, o que aprendeu? “Aprendi que a possibilidade de sermos um destes reclusos é muito grande.”

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