No teatro violento e lírico de Rodrigo García, o texto não é dono dos actores

Em Lisboa para apresentar a publicação do livro Agamémnon – Vim do Supermercado e Dei Porrada ao Meu Filho, o dramaturgo hispano-argentino Rodrigo García falou de um teatro que já foi marcadamente violento na sua crítica ao capitalismo e ao consumismo. Essa “diatribe lírica”, como lhe chama Jorge Silva Melo, fez dele uma das vozes mais singulares do teatro europeu.

Rodrigo García
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Agamémnon
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Rodrigo García estranha-se. Acabado de se ouvir enquanto autor de Agamémnon – Vim do Supermercado e Dei Porrada ao Meu Filho, na voz do actor Gonçalo Waddington, confessa: “Tenho vergonha e assusto-me com tanta violência.” A violência é, de facto, desbragada e contundente no monólogo de um pai que faz exactamente aquilo que o título anuncia, mas sempre com um tal excesso que a violência e o humor se fundem numa narrativa quase grotesca, num ataque cerrado e corrosivo à sociedade de consumo e ao mundo capitalista.

Tanto quanto se lembra, confessa perante uma sala cheia no Teatro da Politécnica, em Lisboa, para assistir à leitura de excertos dos textos incluídos no volume Agamémnon… e Outras Peças – número 86 na colecção Livrinhos de Teatro publicada pelos Artistas Unidos –, a escrita algures em 2003 foi vertida febrilmente para o papel e, diz ele hoje, inspirada talvez pelo ritmo de Uivo, de Allen Ginsberg.

Só que a estranheza não se prende apenas com a violência das palavras, de um pai que distribui estalos no filho e na mulher para depois os levar a jantar fora num KFC à beira da estrada, onde improvisa uma lição sobre a tragédia com frascos de ketchup. A estranheza está igualmente no facto de, apesar de ser um autor publicado, o argentino Rodrigo García não deificar o texto. Pelo contrário, quer que os actores não se limitem a debitar as palavras por si escritas. Daí que a fixação em papel do texto de uma peça da sua autoria seja apenas reveladora de uma das dimensões que explora em palco. Na maior parte das vezes, aliás, começa por trabalhar sem texto. “Ensaio acções e momentos teatrais com os actores”, explica horas antes em conversa com o PÚBLICO. “E adio o mais possível o momento em que chego ao ensaio com a literatura. Então, provoco uma espécie de cataclismo estranho porque temos de ver se alguma coisa das imagens que trabalhámos antes nos serve. Há imagens e acções que necessitam da palavra para ter sentido; outras não, estragam-se.”

Apesar da mestria com que torce as palavras, Rodrigo García diz-se um autor acidental. Quando chegou a Madrid, depois de se formar na Argentina em convívio com as obras de Samuel Beckett e Harold Pinter, tentou prolongar esse teatro de que se sentia próximo. “Mas não conseguia montar uma peça de Beckett porque havia um sistema muito claro de subsídios e ajudas estatais, algo que não existe na Argentina, onde as pessoas trabalham numa padaria ou num táxi de manhã e fazem teatro à noite. Ainda me ajudaram a pedir subsídios, mas claro que ninguém me deu nada.” Pouco depois, ao saber de um concurso de textos teatrais, escreveu uma peça e participou, ganhando um dos prémios. A falta de oportunidades para se afirmar como encenador foi então compensada pela pequena abertura para levar à cena os seus próprios textos, inicialmente muito deslumbrados com a descoberta do teatro de Heiner Müller. “Essas duas ou três primeiras obras que escrevi são plágios de Müller escritos por um miúdo de 22 anos, sem experiência de vida. Estava profundamente comovido por aquela escrita. Pouco a pouco, fui procurando o meu estilo.”

<i>Ronald no Citemor</i>
Enquanto lutava contra o conservadorismo madrileno – aquele meio teatral “não aceita que alguém tome a liberdade de utilizar o teatro de outra forma”, argumenta – e procurava um estilo que sedimentou um crescente estatuto na dramaturgia europeia, Rodrigo García fez como na sua terra e deixou o teatro para as investigações nocturnas enquanto ganhava a vida trabalhando em publicidade. Foi assim durante muitos anos e foi com este labor que custeou as suas primeiras produções teatrais em Madrid com a sua companhia La Carnicería Teatro. García privilegia mais este facto do que as temáticas que então abordava, mas é impossível não ler na violenta crítica dessa fase a que chamou “poesia anti-sistema” um contrapeso moral à sua actividade, atacando a sociedade de consumo e a presença (também ela agressiva e subjugadora) das marcas comerciais no quotidiano. Hoje admite que peças como Comprei Uma Pá no Ikea para Cavar a Minha Tumba, A História de Ronald, o Palhaço da McDonald’s ou mesmo Agamémnon se enquadram numa “etapa que já passou e onde se vê uma espécie de ira de alguém que tinha trabalhado no mundo da publicidade”. “Claro que para mim era horrível pensar nos anos e esforço dedicados a dizer às pessoas que a Coca-Cola nos faz felizes e me parecia bem poder atacar isso. Agora parece-me um pouco ingénuo, mas ao menos foi honesto.”

Uma das peças mais importantes desse período foi criada em Montemor-o-Velho, em 2003, a convite de Armando Valente, director do festival Citemor. “Telefonaram-me a perguntar se queria ir, dizendo que me podiam oferecer alojamento, um mínimo de dinheiro e técnicos. E então metemo-nos à aventura, sem dinheiro, com os actores a levarem a família por dois meses.” A peça, Ronald, o Palhaço da McDonald’s foi então estreada no Citemor e tornou-se uma das obras emblemáticas de Rodrigo García, apresentada em festivais de todo mundo durante anos a fio, trazendo-lhe um reconhecimento internacional que o impôs como um dos nomes mais relevantes do teatro europeu e abriu caminho para ser nomeado há um ano director do Centro Dramático Nacional de Montpellier, que sob a sua liderança passou a designar-se Humain Trop Humain.

Esse estatuto, no entanto, nunca teve grande eco em Portugal, uma vez que só no Citemor Rodrigo García encontrou verdadeiramente um espaço para o seu teatro. Tal como acontece em Inglaterra, reconhece o dramaturgo. Jorge Silva Melo, director dos Artistas Unidos e responsável pela publicação de Agamémnon, diz conhecer García “mais como escritor do que criador de espectáculos” precisamente por esta pouca disponibilidade portuguesa em receber a obra do hispano-argentino. “As grandes instituições de hoje são muito anglófonas e o mundo dele não entra no racionalismo britânico, um teatro muito baseado em personagens. Nas suas peças, o Rodrigo matou a ideia de personagem.” Por isso, Silva Melo gaba-lhe sobretudo a “capacidade de a diatribe ser lírica e revolta. A revolta do Rodrigo não é só a revolta de uma pessoa zangada, é a revolta de uma pessoa que tem dons, que tem poder literário. Não é apenas um tipo que está zangado com o mundo, mas que sabe designar o mundo.”

Silva Melo assistiu apenas a Ronald no Centro Cultural de Belém, em 2002, na mesma ocasião em que John Romão, então estudante no Conservatório de Teatro e com curtos 18 anos tomou contacto com a obra de García. “Estava a receber imensa informação e sempre fui muito interessado em procurar coisas além da escola. Quando vi o espectáculo do Rodrigo vi aquilo que nunca tinha visto em cena: havia teatro, havia textos, havia acções performativas que não podiam ser repetidas diariamente com a mesma precisão – era um teatro vivo todos os dias”, diz Romão ao PÚBLICO. Esse encontro revelar-se-ia determinante. Tendo passado a seguir a obra de García, Romão aproveitou, em 2005, um curso da Nouvelle Écoles des Maîtres para trabalhar com o argentino. Daí em diante, passou a seu assistente, acompanhando cada nova criação desde a apresentação no Citemor, em 2006, de Autocompaixão. Depois, em 2011, foi ele quem traduziu, encenou e propôs a Gonçalo Waddington protagonizar Agamémnon em Lisboa, na esperança de que “pudesse ser impulsionador de interesse nos outros”. Na mesa de leitura, na noite da Politécnica, estão Romão, Waddington e a actriz Isabel Abreu, partilhando textos. Enquanto Rodrigo García se observa, através deles, estranhando-se num palco onde só existem palavras.

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