Aquilino revisitado

Um excelente roteiro da obra da segunda grande figura literária portuguesa do século XX

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Genuinidade lusitana e cosmopolitismo parisino, cepticismo anatoliano e gana elementar de viver: as contradic¸o~es de Aquilino

Este livro constitui um excelente roteiro da obra de Aquilino Ribeiro (1885-1963), nos seus aspectos estilísticos, temáticos e ideológicos. Porém, não é de leitura fácil, nem recomendável a principiantes. As duas primeiras partes, relativas à “poética vitalista” e aos “paralipómenos aquilianos”, estão repletas de um jargão complicado e de uma sintaxe demasiado arrebicada que levarão um leitor menos preparado a desistir. No entanto, deixados de lado tais vícios, será de atentar em três das virtudes deste livro.

Primeira virtude, o modo claro como o autor estrutura e desenvolve o seu argumento. Antes de mais, trata-se de reconstituir o ponto de vista do autor. Como dizia Aquilino, citado por Seabra Pereira, “entrever o escritor na estrutura própria”. Tarefa que implica tanto uma análise dos discursos, ou seja, da escrita e dos temas tratados por aquele, bem como a sua interpretação à luz das posições que assumiu no interior de um campo literário atravessado por conflitos. Por outras palavras: intencionalidade e contexto constituem os dois fios condutores, que se completam entre si, de uma análise literária e cultural. Através deste procedimento, o estudioso da obra literária dobra-se de historiador da cultura, na dimensão própria que é a da criatividade literária. Ora, só através destes instrumentos analíticos se poderá compreender aquela que foi considerada, por Óscar Lopes, a “segunda grande figura literária portuguesa” do século XX, logo após Fernando Pessoa.

A segunda virtude encontra-se nas explicações do projecto de uma “escrita vital” atribuído a Aquilino. E o que quer isto dizer? Seabra Pereira recusa-se a responder a esta questão através de uma única definição, mas procede muito correctamente de modo analítico. No fundo, trata-se de uma maneira de compreender como é que a escrita de Aquilino capta perspectivas antagónicas: “de genuinidade lusitana e cosmopolitismo parisino, de cepticismo anatoliano e gana elementar de viver, de enraizamento telúrico e erudição clássica, de vernaculidade intencionada e polifonia estílistica”. Mais. A obra de Aquilino afunda as suas raízes numa genealogia que remonta aos esforços racionalistas e libertinos do Iluminismo, mas também está repleta de manifestações dos “novos intuicionismos” e dos “ímpetos do desejo”. No mesmo sentido, de explorar dimensões antagónicas no interior da obra de Aquilino — que só aparentemente pode ser considerada de retorno à terra e à província, por parte de quem se prezava de ser um “céptico civilizado” —, encontram-se os diferentes elementos que diferenciam a sua obra tanto dos escritos de tradicionalistas reaccionários como de neo-realistas progressistas, ou ainda dos sucedâneos do “queirosianismo academizado”.

Onde as tensões e os antagonismos atingem um dos seus pontos altos, na análise de Seabra Pereira, é a respeito da religião e do suposto anticlericalismo de Aquilino. Ora, segundo o mesmo estudioso, o encontro “da obra aquiliniana com o mundo religioso e eclesial não reside em anticlericalismo; e quando ganha cambiantes anticlericais trata-se apenas da incidência, nesse domínio (como em todos os outros), do espírito irreverente e crítico, irónico ou satírico, de matriz libertino-iluminista, que anima todo o discurso inconformista de Aquilino”. Ou seja, “esse vector que, assim, não se confunde com estreito propósito anticlerical, é bem mais complexo e multifacetado”. De novo, parece ser nesse mesmo vector que se encontra uma “escrita vital”.

Última virtude do livro: a capacidade de Seabra Pereira para explicar que a modernidade de Aquilino vive do cruzamento entre uma cultura cosmopolita europeia, de raiz francesa, e outra de sentido local e rural, cujas descrições e alusões são irreverentes e sardónicas. À margem do modernismo do Orpheu, Aquilino — com a sua experiência de cidadão do mundo e a sua cultura de estrangeirado — tanto põe em causa imagens idealizadas relativas à harmonia da vida nos campos como se interroga acerca da urgência da modernização das aldeias. Estas são descritas como um mundo de almas bárbaras onde se aprendiam os “instintos capitais”, mas donde não estava excluída uma violência exercida ao ritmo do quotidiano (feita de homicídios, agressões, arruaças, e de práticas de justiça pelas próprias mãos).

É poderosa a análise da obra de Aquilino empreendida por Seabra Pereira (tão poderosa, aliás, que dispensaria as referências ao modo como a escrita de Aquilino se constitui em “antecipação da narrativa pós-moderna”). Dá que pensar. E convida os leitores de Aquilino a voltar a lê-lo. Seabra Pereira faz com que o leitor fique com água na boca e exija — provavelmente mais ao editor do que ao autor — que, numa próxima edição deste livro, não corte as notas e o aparato bibliográfico, pois não há critério nem razão comercial que possam justificar uma tal censura.

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