Gay politics

Um Coração Normal, a nova produção da HBO Films a ter a SIDA como tema, é um filme desconfortável, o que é bastante arriscado, para não dizer corajoso.

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Um Coração Normal não se coíbe de mostrar as cobardias de alguns – assim como a coragem e o altruísmo de outros

Em paralelo com as consagradas séries de televisão que têm feito o seu nome – The Wire, Sopranos, Game of Thrones –, o canal de televisão por cabo norte-americano HBO também se tem destacado pela qualidade dos telefilmes que produz, com elencos recheados de estrelas e altos valores de produção. Não é um fenómeno recente, se bem que para os espectadores europeus talvez se tenha tornado mais evidente depois da “polémica” Por Detrás do Candelabro, que, segundo o realizador Steven Soderbergh, não conseguiu arranjar financiamento nos grandes estúdios de cinema por a temática ser “demasiado gay”, até porque o filme teve distribuição comercial nas salas.

No entanto, a relação da HBO com filmes “difíceis” é bem mais antiga, basta lembrar que o premiado Elefante de Gus Van Sant também foi uma produção da casa ou que as primeiras obras a lidarem com a SIDA e a lentidão das respostas oficiais à doença vieram do canal televisivo, à cabeça E A Banda Continua a Tocar de 1993, telefilme realizado por Roger Spottiswoode e protagonizado por Matthew Modine, a partir do livro do jornalista e activista gay Randy Shilts.

Na verdade, Filadélfia de Jonathan Demme, de 1994, foi o primeiro filme de grande público a falar sobre a SIDA, tendo granjeado prémios e grande aceitação do público e crítica, só que, passados vinte anos, parece demasiado correcto, demasiado certinho, demasiado apostado em desenhar um retrato do homossexual delicodoce, um pouco à maneira do que se fez com os negros em outros filmes de “boa consciência”. De resto, E A Banda Continua a Tocar padece de problema idêntico. Ou seja, se o estereótipo do gay como homem efeminado e apatetado que assolou o cinema até ao fim do século passado – como se verifica no documentário The Celluloid Closet de Rob Epstein e Jeffrey Friedman – foi finalmente posto em causa, a troca por uma versão quase angelical e asséptica do homossexual acabava por ser condescendente e tão redutora como a outra. O que talvez tenha sido uma etapa necessária, devidamente ultrapassada no novo milénio, muito por conta de obras como a mini-série Anjos na América, baseada numa peça de Tony Kushner e realizada por Mike Nichols, também produzida pela e exibida na HBO, em que o Ray Cohn de Al Pacino, homossexual, podia ser ao mesmo tempo uma personagem execrável (ainda que carismática) e vítima da doença que começou por ser conhecida como o “cancro dos gays” (um dos seus primeiros nomes oficiais foi GRID, Gay-related imune deficiency).

Um Coração Normal, a nova produção da HBO Films a ter a SIDA como tema, realizado por Ryan Murphy, criador de séries televisivas tão famosas quanto Nip/Tuck, Glee e American Horror Story, é, assim, um novo avanço nesta linhagem. A principal diferença para os seus antecessores será a incorrecção política, no sentido de que aqui os “inimigos” não estão só nas esferas governamentais que desprezaram o potencial de destruição da SIDA nos primeiros anos como dentro da comunidade homossexual. Aliás, o telefilme baseia-se numa peça de Larry Kramer (adaptada agora pelo próprio), escrita em meados dos anos 80, logo após este ter sido expulso de uma organização de apoio aos doentes de SIDA surgida no seio da comunidade gay nova-iorquina, o Gay Men’s Health Crisis, da qual havia sido um dos impulsionadores e fundadores. E, como tal, é, antes de mais, um ajuste de contas. Porventura, sê-lo-ia mais quando se estreou nos palcos, no entanto não deixa de o ser agora, trinta anos depois, tendo alguns dos alvos morrido entretanto (o que a torna numa vingança talvez fria de mais, por muito que os nomes tenham sido alterados). Se os anos 70 representaram os primeiros grandes avanços nos direitos dos homossexuais, o início dos anos 80 prometia uma década de libertação sexual e hedonismo – a primeira sequência de Um Coração Normal, passada em Fire Island, filma essa promessa, a sensualidade dos corpos queimados pelo sol como que num teledisco da altura. A SIDA veio acabar com esse sonho, transformando-o num dos mais negros pesadelos das últimas décadas. Porém, muitos dos que haviam lutado pelos direitos dos homossexuais viram quaisquer sugestões de que deveriam refrear a sua actividade sexual (ressalve-se que a princípio não havia certezas que a doença fosse sexualmente transmissível) como um retrocesso. Por outro lado, o facto de alguns activistas e algumas pessoas em altos cargos serem homossexuais “no armário” tornava a luta por uma resposta pronta por parte do Governo norte-americano menos vocal do que desejável.

Em Um Coração Normal, Ned Weeks, o mais do que óbvio alter-ego de Larry Kramer interpretado por um Mark Ruffalo em permanente revolta, coloca-se contra uns e outros, berrando discursos inconsequentes (no sentido de terem reduzidos efeitos práticos, o que é raro em filmes deste tipo, nos quais quando um protagonista discursa dá novo rumo à história, para melhor) boa parte do tempo – o histrionismo de algumas personagens, não só Weeks mas também a Dr.ª Emma Brookner de Julia Roberts, é, passe o trocadilho, gritante  e insultando quem lhe aparece à frente, incluindo amigos e aliados. O espectador pode ficar um pouco de pé atrás pela maneira como Kramer se escreve a si mesmo como o herói da história, se bem que não deixe de expor os defeitos das suas qualidades – a dada altura, a própria personagem reconhece que é um asshole.

Pese embora estes “problemas”, Um Coração Normal é uma interessantíssima reflexão sobre gay politics, não se coibindo de mostrar as cobardias de alguns – assim como a coragem e o altruísmo de outros –, os recuos, as concessões, as dúvidas e anseios, fugindo de qualquer representação idílica dos homossexuais. Ajuda a isso que tenha personagens de corpo inteiro, que erram e hesitam e magoam e fazem mal, em vez de seres humanos impossivelmente bondosos e inatacáveis. Outro aspecto bastante interessante é a forma como Ryan Murphy filma a doença, com traços do género do Terror (alguns críticos acusaram-no de trazer algo de American Horror Story para este telefilme). Noutras obras de ficção, a SIDA era representada sobretudo pelas lesões do Sarcoma de Kaposi (veja-se como em Anjos na América, à excepção de umas pintas e delírios nocturnos, Prior Walter parece razoavelmente saudável). De fora ficavam o excremento, a fealdade, a debilidade, a vulnerabilidade, a demência que Murphy retrata sem hesitações (e com a mesma sensualidade como filmara os corpos saudáveis ao início), atingindo momentos quase revoltantes, como quando um corpo de um doente de SIDA é literalmente deitado ao lixo num hospital ou na transformação do corpo de Matt Bomer, de homem desejável a repulsivo, um monte de ossos coberto de chagas, que mal se consegue manter de pé. No fim de contas, o maior elogio que se pode fazer a Um Coração Normal é de que é um filme desconfortável, o que, abordando uma temática tão delicada, é bastante arriscado (por risco de mal entendidos e ou ressurgimento de agravos antigos), para não dizer corajoso.

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