A Casa da Vida

O Museu Judaico de Amesterdão é fonte de inspiração também para o futuro Museu Judaico em Lisboa, em preparação.

Este é o nome do cemitério judaico-português de Ouderkerk, a poucos quilómetros de Amesterdão, que comemora este ano o seu quarto centenário. Foi com efeito em Junho de 1614 que foi assinado o contrato de compra do terreno pela comunidade judaico-portuguesa de Amesterdão. Nesse mesmo ano seria enterrada uma criança, Joseph de David Sénior. A legenda, em hebraico, é um poema no qual a própria criança afirma que foi levada deste mundo em tenra idade e que é a primeira pessoa a ser enterrada no Beth Haim – Casa da Vida.

Os mortos contam-nos muito sobre a vida. Talvez por isso, muitos cemitérios judaicos, incluindo o de Amesterdão, tenham esse nome. Olhando as suas campas ficamos a saber não só quando, mas frequentemente também como viveram: se eram ricos ou pobres, sábios ou poderosos, médicos ou alfaiates, se eram amados ou temidos. As suas campas também nos contam alguma coisa das sociedades onde viveram – não apenas pelos materiais usados, mas pela decoração ou a forma das suas campas. A Casa da Vida de Amesterdão não é excepção: nas lápides das suas campas podemos sentir o pulsar da vida da comunidade judaico-portuguesa ao longo destes 400 anos. O cemitério é na realidade o seu mais fiel espelho.

Os primeiros “marranos” portugueses em fuga da Inquisição instalaram-se na Holanda e especialmente em Amesterdão em finais do século XVI, muitos deles vindos de Antuérpia, dando origem à mais brilhante comunidade sefardita da diáspora judaico-portuguesa. A escolha daquela cidade não surge por acaso: a liberdade de consciência fora inscrita nas leis da União de Utrecht em 1579 e, embora com certas limitações, esta oferecia aos judeus algumas liberdades e privilégios deixando ao critério de cada burgo a liberdade de decisão sobre a sua instalação.

Na verdade, não foi fácil aos primeiros judeus a compra de um terreno para enterrar os seus mortos. Depois das recusas sucessivas do burgomestre de Amesterdão em 1606 e em 1608, só em 1614 foi possível a compra do terreno, por Isaac Franco Medeyros, em Ouderkerk, a sete quilómetros da cidade. Os judeus mortos em Amesterdão eram assim transportados por barco até ao cemitério ao longo de um canal do rio Amstel.

Olhar hoje para as campas é ver um pouco do Portugal que perdemos: Elias Montalto, de Castelo Branco, médico pessoal de Maria de Médicis, e Isaac Oróbio de Castro, de Bragança, também médico e filósofo; Menasseh ben Israel, aliás Manuel Dias Soeiro, da Madeira, rabino imortalizado num quadro de Rembrandt e primeiro impressor de livros em hebraico em Amesterdão; Isaac Aboab da Fonseca, de Castro Daire, um dos mais proeminentes rabinos no século XVII e que seria mais tarde o primeiro do Novo Mundo, dirigindo a partir de 1641 a nova comunidade judaica de Recife, Pernambuco; Jacob de Aharon de Sasportas, também rabino e cabalista; Michael de Espinoza, pai do filósofo Baruch-Bento Espinoza; David Franco Mendes, hebraísta; Abraham Israel Suasso, aliás Francisco Lopes Suasso, banqueiro; Moses Curiel, aliás Jerónimo Nunes da Costa, mercador e agente do rei D. João IV... Estas campas e muitas outras cuja lista não cabe aqui contam-nos não apenas quem eram os homens e mulheres que jazem neste cemitério, mas a magnificência da comunidade judaico-portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Tal como manda a tradição sefardita, são campas horizontais, grande parte com texto em hebraico e português e motivos bíblicos. No entanto, a sua decoração faustosa reflecte também a influência da arte funerária holandesa da época e o grau de integração social dos seus membros.

Dois memoriais no cemitério simbolizam a história simultaneamente gloriosa e trágica desta comunidade: o primeiro data de 1899 e contém a seguinte inscrição em português: “Este monumento foy erigido a David de Moseh Henriques de Castro q D. T. En momoria das obras importantes que efeituou neste cemitério para conservar pela posteridade a lembrança dos homens ilustres da nação judaica portugueza em Amsterdam. Aos 5659 – 1899.”

O segundo memorial encontra-se num dos cantos do cemitério onde estão 23 urnas contendo as cinzas de alguns desses “ilustres da nação judaico-portuguesa”, mortos e cremados pelos nazis no campo de concentração e trânsito de Westerbork. Aí, o memorial erigido em 1947, da autoria de Frank de Miranda, deplora: “A sua última morada não pôde ser aqui...” Com efeito, dos 4300 judeus de origem portuguesa, sobreviveram cerca de 500. Para os outros, a sua última morada foi Auschwitz ou Sobibor.

Visitei o cemitério, desta vez, no âmbito de uma viagem organizada pela Rede de Judiarias de Portugal, cujo objectivo era estreitar os laços com a comunidade judaico-portuguesa de Amesterdão, associando-se às comemorações do seu quarto centenário. Para além do cemitério, estivemos na magnífica Esnoga – Sinagoga Portuguesa de Amesterdão, e pudemos observar o trabalho exemplar do Museu de História Judaica. Para além da Sinagoga Portuguesa, engloba também as quatro sinagogas asquenazes e estende-se pelo antigo bairro judaico, incluindo o teatro onde eram concentrados os judeus antes de serem deportados. Tal como no século XVII, a Sinagoga Portuguesa foi a referência e o modelo de muitas sinagogas sefarditas, hoje o museu onde se insere é também uma referência reconhecida internacionalmente.

O Museu Judaico de Amesterdão é fonte de inspiração também para o futuro Museu Judaico em Lisboa, em preparação. A história do judaísmo português – na qual também se insere a da sua diáspora – merece ser contada e conhecida pela população portuguesa e estrangeira. Afinal ela é parte integrante – e nalguns aspectos determinante – da História de Portugal.

Especialista em assuntos judaicos

Sugerir correcção
Ler 9 comentários