Há uma linha que separa um imigrante do outro e foi Obama que a criou

A ordem executiva do Presidente dos EUA sobre os imigrantes ilegais criou novas desigualdades. As histórias de vida e os desabafos de um grupo de hispânicos que habita um parque de caravanas.

Luis Alberto Reyna e Adrian Granados
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Luis Alberto Reyna e Adrian Granados Timothy C. Wright/The Washington Post
Eulogia de Jesus com os filhos Jerry, Sharon, Adrian e Sina
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Eulogia de Jesus com os filhos Jerry, Sharon, Adrian e Sina Timothy C. Wright/The Washington Post

Antes mesmo de o Presidente Barack Obama ter acabado de explicar a sua ordem executiva sobre a imigração, eles — os operários da construção, os seguranças, os jardineiros, os pintores e os operários fabris que vivem no parque de atrelados na zona sul de Richmond — já sabiam. Alguns vão ficar para trás. É a história da vida deles — sempre que alguém traça uma linha, uns ficam do lado de cá e outros do lado de lá.

Aqui, como noutros enclaves de imigrantes por todo o país, eles juntaram-se em salas de estar, em cafetarias, dentro de carros e, com os rádios ligados, ouviram o anúncio do Presidente. E foi isto o que ouviram: Vou proteger muitos de vocês da deportação, mas talvez não proteja todos os vossos vizinhos. Vou dar a muitos de vocês segurança social, mas vou deixar os outros com os seus cartões falsos e os pagamentos por baixo da mesa. Alguns vão ter cartas de condução legais, outros têm que se desenrascar com o que têm. Uma mulher que teve um filho neste país merece o mesmo do que a mulher que teve o filho noutro país ou do que um homem sem filhos, mas isto é o melhor que eu consigo fazer agora.

A linha divisória ecoou por todo o país. Nos dias que se seguiram, o anúncio de Obama deixou um travo agridoce.

Dentro e fora. Foi assim no tempo da Administração Reagan, nos anos 1980. É assim hoje, apesar de o impacto desta decisão presidencial não ser tão grande. Obama traçou uma linha divisória — temporária, condicional, mas uma linha. Vários milhões de pessoas vão ficar de um lado. Muitos outros milhões ficarão do outro.

O operário da construção civil que tem a caravana verde desbotado, um homem orgulhoso com um chapéu de cowboy que grita por Chihuahua e tem uma fivela no cinto que parece uma pistola mas é na verdade um isqueiro, fica de fora. Não tem qualquer hipótese. Vive aqui há 16 anos, mas não tem filhos nascidos nos Estados Unidos, não tem filhos com direito a residência legal. Obama deixou claro que só as pessoas com filhos cidadãos teriam direito a uma autorização de trabalho, ficando temporariamente protegidos da deportação.

A mulher das Honduras, essa fica dentro. Há 12 anos no país, tem duas crianças nascidas nos EUA. E um cadastro limpo. Conta que está em pulgas para ter, finalmente, uma carta de condução, e acrescenta que nunca perdeu a esperança no Presidente.

Neste bairro, a linha que Obama traçou anda em ziquezague: Eulogia de Jesus, mãe de quatro jovens cidadãos americanos, residente nos EUA há 14 anos, está dentro. O marido, com duas detenções por condução sob o efeito de álcool — a última das quais o pôs na ala de detenção de imigrantes ilegais — não deverá conseguir ficar do lado certo da linha.

A linha volta a ziguezaguear pelo bairro: Tomas Policao, há dez anos no país, pai de um americano de dois anos, está apto. Mas o seu jovem irmão, Bonifácio, há oito anos na comunidade, mas que é solteiro e que dorme no quarto ao fundo do corredor, está fora.

Gisela Munguia, das Honduras, e Freddy Velasquez, de El Salvador, no país há 12 e 20 anos, respectivamente, e pais de dois filhos nascidos na América, estão dentro. Mas esperam: quando saiu das Honduras, Gisela deixou um filho de quatro anos que, no ano passado (11 anos depois) se juntou à mãe na América. Foi um dos menores que atravessaram, sozinhos, a fronteira e se entregaram às autoridades. Agora está à espera de ir a tribunal — de que lado está ele, está dentro ou fora?, pergunta a mãe.

Pedir reacções a esta realidade dividida é um exercício complicado. Há generosidade e contentamento pela sorte dos outros, mas não imunidade à inveja. A alegria e o alívio andam a par da desilusão e da consternação.

Responda a isto, dizem Luis Alberto Reyna, o homem de Chihuahua, Adrian Granados, de Guanajuato, e Juan Robledo, de Guerrero (os três receberam a amnistia de Ronald Reagan): como é que nós, que trabalhamos neste país há mais de cinco anos, mas que não temos filhos, ficamos de fora?

“Nunca tive apoio do Governo”, diz Reyna. “Não tenho cadastro. Nunca pedi nada, nunca sobrevivi graças a subsídios. Quando os meus dentes se estragaram, arranquei-os eu próprio”. “Eu fiz o mesmo”, diz Granados. “Foram os molares”. “Por que é que estamos nesta situação?”, pergunta Reyna. “Por que é que isto acontece?”

Bonifacio Policao, um operário fabril solteiro e sem filhos, encolhe os ombros a esta discussão: “Nada disto me interessa. Fico contente pelos meus irmãos”.

Durante o anúncio de Obama, a 20 de Novembro, todos se juntaram para ouvir o Presidente — e agradeceram, e desejaram que mais gente pudesse ser abrangida pela ordem presidencial. Velasquez ouviu o anúncio com o coração apertado, tentando controlar-se. Mal Obama acabou de falar, telefonou à mãe, que estava a morrer em El Salvador, aos 85 anos. “Espera por mim”, disse-lhe ele. “Chego muito em breve, chego mal seja ‘aprovado’”. Mas a mãe respondeu-lhe que estava velha e pronta para morrer, e morreu dois dias depois.

Apesar destes episódios, aqui o sentimento geral é de gratidão e alívio. A autorização de trabalho, dizem eles, trará benefícios. Por exemplo, vai-lhes dar mais margem de manobra para negociarem melhores condições de trabalho e salários mais altos, dinheiro para mandarem arranjar as suas velhas casas móveis.

Eulogia de Jesus já está a ensaiar as palavras que vai dizer aos patrões, na fábrica. “Vou-lhe dizer que já tenho os meus papéis e que têm que me pagar mais ou vou procurar trabalho noutro lado.”

Para Eulogia, isto é crucial porque o marido pode ser deportado, por causa da condução sob o efeito de álcool. Se ele for deportado, diz ela, “será devastador”. “Está detido há um mês e os nossos filhos choram — mas a decisão do Presidente beneficia-me a mim e aos miúdos e tenho que aproveitar esta oportunidade.” Faz uma pausa, para pensar: será que a situação do marido a vai prejudicar, será que vai poder finalmente ir a Guerrero visitar a mãe? “Não a vejo há 14 anos.”

O espaço que vai do anúncio à aplicação da medida — na Primavera — enche-se de dúvidas. Se o meu registo de impostos for limpo tenho alguma hipótese? Se não for casada com o pai dos meus filhos sou excluída? Se o meu marido tiver mais do que uma detenção por conduzir alcoolizado posso ser excluída? Há muitos testes à linha que Obama traçou.

Robledo, que está legalizado, faz a pergunta que está na cabeça de muita gente: o que acontecerá quando Obama deixar de ser Presidente?

Os imigrantes começaram a instalar-se neste parque de caravanas há uma década. Famílias seguiram outras famílias e numa zona desta cidade que se define a preto e branco, ali junto à auto-estrada, onde estão os stands de carros em segunda mão, as lojas de conveniência e os motéis baratos, apareceu um acampamento de gente de língua espanhola.

Temporária ou definitiva, foi esta a vida que construíram nos Estados Unidos. Pagaram alguns milhares de dólares pelas caravanas onde vivem e pagam 430 dólares por mês para as terem ali. Declaram-se proprietários. Neste final de tarde de domingo, o dia que antecede mais uma semana de trabalho, a luz do sol ilumina uma bandeira americana junto a uma vedação ali perto, os miúdos jogam à bola e o fumo liberta-se dos churrascos. “Talvez este não seja o vosso sonho americano”, diz Reyna, o homem de Chihuahua. “Mas é o nosso, e ainda acho que tive que vir para este país para ter uma vida melhor.”

Exclusivo PÚBLICO/“The Washington Post”

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