Nitrocidadania

A quantidade de azoto emitida para a atmosfera e reposta nos ecossistemas é um cálculo complexo mas de custo elevado, para o ambiente e a saúde pública.

O advento da indústria dos fertilizantes, há um século, permitiu o desenvolvimento da agricultura e a sua transformação de actividade de subsistência para economia global. É realmente difícil avaliar os custos e benefícios da descoberta do processo industrial conhecido por Haber-Bosch.

O seu maior benefício é a produção de fertilizantes azotados, que tem permitido o crescimento da população. Mas trouxe custos, relacionados com a introdução de compostos que desequilibram o ciclo deste elemento na natureza. Para além dos fertilizantes, o azoto é lançado no ambiente através da pecuária, detergentes, plásticos, fibras, combustões industriais, produção de energia e transportes. A quantidade de azoto emitida para a atmosfera e reposta nos ecossistemas é um cálculo complexo mas de custo elevado, para o ambiente e a saúde pública. Mas nem por isso mudamos atitudes que possam pelo menos desacelerar este efeito. A sociedade necessita de ser informada para desenvolver comportamentos sustentáveis e promover o que aqui se intitula de nitrocidadania.

O conceito pressupõe a consciencialização e sensibilização para o problema originado pelo excesso de compostos de azoto no ar, solo, água e seres vivos. Primeiro há que conhecer, entender, para depois estabelecer alterações comportamentais e cidadania activa. As emissões, devidas à queima dos combustíveis fósseis, estão directamente ligadas às alterações climáticas e podem ser alteradas por políticas governamentais e opções individuais sobre a sua utilização doméstica. Mas as maiores emissões provêm da agricultura e pecuária, isto é, da produção de alimento. Tendo presente o aumento da população e as suas previsões, e, em particular, a maior dependência das sociedades em proteína animal, os modelos indicam que a deposição de azoto no ambiente terrestre e marinho aumente para mais do dobro até 2050. Isto provoca desequilíbrios a nível da funcionalidade dos ecossistemas e poluição das águas, do ar e degradação dos solos. Foi recentemente comprovado que o desaparecimento das abelhas no Reino Unido está correlacionado com a expansão e difusão de fertilizantes ao longo do último século. A nível das cidades, onde se encontra a maioria da população, os níveis de azoto na atmosfera originam problemas sérios de saúde pública.

A complexidade das ameaças e as suas interacções têm justificado o conhecimento científico segmentado. Também as políticas ambientais são fragmentadas por tema  ar, terra e água –, por problema  clima, biodiversidade, lixo, desperdício e saúde pública  e por forma de azoto. É  tempo de se desenvolver uma investigação transdisciplinar tendo em conta o aumento da eficiência do uso dos fertilizantes, mas também compreendendo o interesse dos agricultores e a procura do consumidor. É este trabalho concertado que pode permitir o desenvolvimento de estratégias que minimizem os efeitos adversos do azoto no ambiente.

A ambivalência do custo-benefício do azoto explica também a dificuldade em obter respostas eficazes a nível local e global. Existem inúmeras barreiras, económicas e sociais, para a implementação de estratégias de sucesso, ligadas, respectivamente, à redução da produção e consumo de carne e à presença de produtos importados à mesa de cada família. Cabe ao consumidor a capacidade de optar por produtos locais e não tão dependentes de proteína animal. Cabe ao cientista explicar que estas acções, a nível local, possuem impactos económicos globais. Este tipo de alteração terá de ser acompanhado por mudanças significativas nas mensagens à sociedade, quer pela equipa médica e nutricionista, quer pelos media e publicitários.

Os problemas associados ao azoto são tão complexos, as dificuldades em romper com modas sociais são tão elevadas, que a maioria prefere valorizar a componente indirecta, responsável por potenciar as alterações nas emissões de CO2 e do clima, cujos ícones ambientais entraram já no léxico social. Apesar de tudo, temos vindo a assistir a um aumento generalizado da informação disponível sobre as causas do aumento de azoto no ambiente, tanto na Internet como em recursos facilmente acessíveis, nomeadamente através da pegada de azoto. Tal como se verificou para as alterações climáticas, ou as medidas de mitigação, esta disponibilidade reforçou o alerta sobre o problema. Mas as mudanças de valores e atitudes são naturalmente as mais lentas e ineficazes, já que têm de vencer hábitos profundamente arreigados e ditames sociais resistentes. No caso do azoto, cuja mensagem é mais difícil de transmitir, há que envolver a nova geração, recorrendo a estratégias inovadoras. Para uma comunicação eficaz é necessário potenciar a acção local, adaptada a cada grupo etário da população, mas com dimensão global. Por outro lado, não basta que os jovens sejam “ensinados” ou alertados, devem antes testar e compreender a consequência da opção de viver para comer ou comer para viver. Sobretudo, entender como uma tecnologia pode originar prós e contras em toda a sociedade, confrontar os problemas de saúde dos portugueses e o papel da dieta mediterrânica. Urge, pois, promover uma cultura de responsabilidade, a começar na educação, com vista ao estabelecimento de uma nitrocidadania.

Professora catedrática da Universidade de Lisboa

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