O Natal português instalado numa montra

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Os pinhões, as nozes, as uvas passas, as frutas cristalizadas e os figos estão alinhados, ocupando a montra quase toda. Têm, junto a eles, pequenas etiquetas em papel indicando o preço. Etiquetas escritas à mão, que ajudam a perceber que este pinhão é corrente e aquele é extra, e por isso é mais caro. Ou que este figo é do Douro e aquela ameixa é de Elvas, pelo que poderá ter de pagar um bocadinho mais por eles. Por perto, anda o bacalhau. Geralmente grande, pendurado junto à porta, para que se veja bem toda a sua dimensão, ou partido em postas tão generosas que parece que uma só é capaz de alimentar uma família inteira. Também há queijos, de várias cores e feitios, garrafas de espumante, azeites e enchidos. É Natal e na Baixa do Porto isso não é apenas luzes a iluminar a noite. É deixar-se prender pelas mercearias tradicionais onde os frutos secos são vendidos a granel, por empregados de bata, que usam pequenos medidores de metal para encher os sacos que vai levar para casa.

As mercearias da Baixa têm orgulho na sua idade. Anunciam a quem passa que andam por ali a vender iguarias há 80 ou há 90 anos. Algumas, como A Pérola do Bolhão, estão quase a fazer cem anos, ainda que não façam alarde disso. Se calhar é por a loja já ter tanta idade que a cliente de cabelos brancos encaracolados não percebeu que é preciso tirar uma senha que anuncia a ordem de atendimento. Modernices. A mulher diz que é a vez de ela de ser atendida, ainda que a senha que tenha na mão (e que só tirou quando já estava na mercearia há um bom bocado, ao ver outra pessoa fazê-lo) não o diga. “É a minha vez, quer atender-me ou não?” O empregado, diplomático, diz que as clientes com uma senha com número mais baixo é que têm de se pronunciar e tudo parece correr mal quando a cliente que será ultrapassada (pelo número de senha, não pela hora de chegada) não se dispõe a ceder o lugar. A mulher de cabelo branco aproxima-se da porta, diz que se vai embora, mas é Natal e tudo se resolve no último instante. “Atenda lá a senhora”, diz, magnânima, a mulher ultrapassada. E lá se enchem os saquinhos com nozes, bombons coloridos (sim, também vendidos a granel), uvas passas.

Não é preciso andar muito. Na Rua Formosa, bastam uns passos para ir de A Pérola do Bolhão à Comer e Chorar por Mais ou à Mercearia do Bolhão. Na Rua de Sá da Bandeira, já ali na esquina, está a Mercearia Chinesa. Dobrada nova esquina, temos A Favorita do Bolhão e a Casa Natal, na Rua de Fernandes Tomás e na Rua do Bonjardim a loja Pretinho do Japão acabou de abrir renovada, não muito longe da Casa Januário. Parecem muitas, mas ainda faltam algumas e, fora destas ruas, há muitas outras. Passem também na Rua das Flores, por exemplo, onde velhas e novas mercearias convivem com os seus produtos a granel e as novidades gourmet.

Por esta altura, as “mercearias finas” da Baixa enchem-se de gente que prefere levar para casa os velhos produtos conhecidos, vendidos ao peso escolhido, em vez de optar pelos pré-embalados dos supermercados. Na Favorita do Bolhão, o dono garante que as grandes superfícies nunca lhe fizeram mossa. Nem a concorrência da vizinhança. “Quantas mais melhor”, diz o filho do proprietário.

Desde o ano passado que as mercearias da Baixa também passaram a fazer parte do Natal lá de casa. Uma das minhas irmãs foi transferida para a Baixa e aquilo custou-lhe. Estava habituada à zona da Boavista, onde trabalhava há anos. Mas, aos poucos, o movimento do comércio em redor reconciliou-a com o seu novo destino diário. E, com o aproximar do Natal, as montras das mercearias tradicionais prendiam-lhe os passos e o olhar. Um dia chegou a casa com um saco cheio de coisas boas e coloridas. Frutos secos e cristalizados (e estes últimos quase não os comemos, mas têm de estar na mesa de Natal porque sim, porque sempre estiveram e o Natal não seria o mesmo sem eles) comprados numa mercearia da Baixa. Nada de pinhões, nozes, amêndoas, damascos, figos recheados ou uvas passas de supermercado. O comércio tradicional sentou-se connosco à mesa. E espero que este ano ele esteja de regresso.

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