Captain Beefheart não estava cá para assustar ninguém

Na caixa Sun Zoom Spark: 1970 to 1972 compilam-se três anos em que Captain Beefheart quis deixar de “assustar as pessoas”. O arrojo não se perdeu. Esta música é inigualável e intensamente inspiradora. Habita o seu próprio planeta.

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O álbum preferido de Matt Groening, o criador dos Simpsons, é o Ulisses de James Joyce da música, o álbum citado como um obrigatório que poucos terão ouvido na totalidade. Chama-se Trout Mask Replica e o seu autor é Don Van Vliet, Captain Beefheart.

Editado em 1969, é um monólito tão enigmático e impenetrável quanto o que Kubrick colocou em 2001 – Odisseia no Espaço. É o rock desmembrado e reconstruído canção após canção das 28 que o compõem. É blues, sempre o blues, na guitarra slide, gemendo fúrias, e na voz imponente assombrada por Howling Wolf. É free-jazz dadaísta idealizado por um compositor de génio, maestro exigente obrigando músicos virtuosos a seguirem os seus desígnios com instruções como esta: “Toca como um morcego a ser arrastado de uma poça de petróleo, e ele está a tentar sobreviver, mas a morrer por asfixia."

Matt Groening explicou que aos 15 anos, ao ouvir pela primeira vez Trout Mask Replica, o terceiro álbum de Captain Beefheart, pensou estar perante a pior coisa que jamais ouvira. “Disse para mim mesmo: eles nem estão a esforçar-se! Era só uma cacofonia desajeitada”, contou Groening em entrevista reproduzida no site Beefheart.com. “Da terceira vez, percebi que era tudo propositado, eles queriam que soasse exactamente daquela maneira. À sexta ou sétima vez, deu-se o clique, e concluí que era o melhor álbum que já ouvira."

Sun Zoom Spark: 1970 to 1972 reúne os três álbuns gravados para a Warner Music no período inscrito no título, acrescido de um quarto disco com extras e versões embrionárias de canções, e mostra-nos o que Captain Beefheart quis fazer para que o público não tivesse de o ouvir seis ou sete vezes até perceber o que tinha perante si.

Lick My Decals Off, Baby, de 1970: a matéria a agrupar-se novamente depois do Big Bang de Trout Mask Replica. The Spotlight Kid, de 1972: o capitão a apresentar-se num fato de cantor country em Las Vegas (era a capa), as galáxias e planetas subsequentes à grande explosão a ganharem formas mais definidas e um sem número de músicos, de Tom Waits aos Deerhoof, dos Talking Heads aos Pere Ubu, a tirarem notas para o futuro. Clear Spot, de 1972: se a convenção fosse este boogie blues expansivo, este funk mecânico de olhos postos num futuro imaginado, então não precisaríamos da vanguarda para nada.

Em 1972, o jornalista da revista americana Crawdaddy perguntava a Beefheart se a passagem para a multinacional Warner e o suavizar das arestas da sua música equivaleriam a um compromisso artístico. Captain Beefheart foi peremptório: “Não, não é um compromisso. Fartei-me de assustar as pessoas com o que andava a fazer. Quer dizer, elas estavam a recuar perante mim. Percebi que tenho de lhes dar qualquer coisa a que se agarrarem, portanto comecei como que a esculpir uma batida na música. É mais humano assim." A música que ouvimos em Sun Zoom Spark é tudo menos um compromisso.

“Por vezes, ele parece quase um visitante de outro planeta, ou, mais exactamente, alguém ainda estupefacto pela primeira visão deste, como suspeito que ele estará para sempre”, escreveu o grande crítico americano Lester Bangs em 1980. Captain Beefheart, mestre da auto-mistificação, dizia ter memória do seu próprio nascimento. O espanto dele perante o mundo e a natureza que o habita, inspiração primeira, é o nosso perante a música que criou, tão profundamente sua que se tornou inimitável.


O pulmão a rebentar

Nascido a 15 de Janeiro de 1941, teve na escultura, arte pela qual foi considerado uma criança prodígio, a sua primeira paixão. A música, a par da pintura, surgiu pouco depois. Apaixonado pelo blues de Son House, Robert Johnson ou Howling Wolf (a voz tonitruante deste último seria a grande referência para o seu canto), e pelo free jazz de Ornette Coleman, teria um pequeno êxito local com uma versão de Diddy wah diddy, original de Bo Diddley, em 1965. Dois anos depois, com o álbum Safe as Milk e com a Magic Band (assim baptizou os grupos que o acompanharam), tornou-se uma figura de culto. Em 1968 foi lançado Strictly Personal e, com Trout Mask Replica, dois anos depois, nasceu a lenda.

Gravado ao longo de 18 meses, é resultado de uma procura metódica, obsessiva, dos sons que o autodidacta Beefheart pretendia ver transcritos pelos músicos. Estes foram descrevendo ao longo dos anos um ambiente de abusos e de tensão constante. Precisamente: “O ingrediente secreto da sua música e pintura era a tensão”, lemos no texto que acompanha Sun Zoom Spark.

Ao ouvir Out-takes, o inédito álbum de extras incluído na nova edição, torna-se evidente que, tal como percebeu Matt Groening, o gesto criativo de Captain Beefheart era, acima de tudo, preciso. Alice in blunderland, de Spotlight kid, é na sua versão embrionária convencional, sem sinais de turbulência. Ou seja, à medida que conduzia os músicos na leitura das canções-rascunho que criava ao piano ou através do registo de melodias de voz num gravador, ia introduzindo novos elementos, procurando ambientes menos confortáveis, transformando as formas que continham o som.

No turbulento Lick My Decals Off, Baby ouvem-se uivos de tribos índias, harmónicas, saxofones e clarinete, que tocava por instinto, sopradas com o pulmão a rebentar de tanto ar expirado. Ouve-se aquela voz expressar-se em poesia de associação livre, torcendo e moldando a linguagem pelas cinco oitavas e meia que alcançava. Ouvem-se ecos africanos nas marimbas e na percussão e o pós-rock a anunciar-se, dilacerante, mas também peças para guitarra acústica e baixo eléctrico que seriam rastilho para liberdades fingerpicking por vir. Em The Spotlight Kid, ouvem-se as guitarras enfrentando-se ou abraçando-se furiosamente, notas caindo em cascata ou riffs espiralando, escalando as montanhas do blues, do rock e do jazz para atingir novos territórios – e o baixo, pulsante, altíssimo, como farol guiando toda a viagem. No “convencional” Clear Spot, ouvimos os dois minutos de Sun zoom spark e entrevemos o que David Byrne e os seus Talking Heads nos apresentariam como revolucionário no histórico Remain in Light. Captain Beeheart, o maestro, tinha consigo os melhores tradutores para as suas intenções, músicos como o guitarrista Zoot Horn Rollo (Bill Harkleroad), o baixista e guitarrista Rockette Morton (Mark Boston), o baterista Drumbo (John French) ou Ed Marimba (Art Tripp), que assegurava marimbas e percussão.

Com Clear Spot, Captain Beefheart encerrou uma fase imaculada. Em 1982, com Ice Cream for Crow, despediu-se da música e desapareceu novamente no deserto. Para pintar e nada mais. Quando morreu, em 2010, aos 69 anos, vítima de esclerose múltipla, era Don Von Vliet, artista respeitado e bem-sucedido no universo das artes plásticas. A música subsiste, ano após ano. Inacreditável, desafiante, intensamente inspiradora.

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