As canções automáticas de Moodoïd: fica-se preso à primeira

É um dos objectos musicais mais fascinantes dos últimos anos a chegar de França. Pablo Padovani, vulgo Moodoïd, cria um mundo de delirante psicadelismo com tentações barrocas.

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FIONA TORRE

Uma romã e Wes Anderson. Uma courgette e Michel Gondry. Um caril e Roy Andersson. Na cabeça de Pablo Padovani, músico francês por detrás do nome Moodoïd, a música é muitas vezes criada a par de metáforas culinárias. Antes de mais, justifica, porque em França a comida é entendida como um prazer vital e porque a forma de confeccionar um prato é em tudo semelhante ao processo que usa para fabricar uma canção, intuindo caminhos e inventando durante um tempo de preparação pouco alongado e pronto a engolir. “E há muita estética na forma como se dispõem no prato legumes, fruta e outros ingredientes, em que são possíveis e compatíveis formas e cores incontáveis”, diz ao Ípsilon. É hora de almoço quando Padovani atende o telemóvel algures nas ruas de Paris e é possível que seja também o estômago a estimular-lhe os comentários que vai continuando a fazer sobre especiarias indianas e especialidades francesas.

Os realizadores de cinema, esclareça-se, não são uma referência gratuita e chamada a despropósito. Surgem porque Pablo, filho do saxofonista de jazz Jean-Marc Padovani, pensa em paisagens fantasistas enquanto faz música, tropeçando em estímulos que só por acidente são puramente musicais. Le Monde Möö é um caldo psicadélico em que pop, jazz, soul, afrobeat, sons magrebinos, cancioneiro beatleniano e chanson se juntam em modo stream of consciouness. Poucos álbuns, de hoje ou de ontem, podem reclamar uma tão ligeira e escorreita eliminação de barreiras entre géneros. Na música dos Moodoïd – Padovani rodeado de um séquito de instrumentistas mulheres, porque a sensibilidade das canções assim o exige, diz ele –, os géneros não entram por camadas. São uma só camada, numa ligação ao onirismo, facilmente entendível como a coexistência pacífica e natural de elementos que durante a vigília não arriscariam ser vistos juntos em público.

A inscrever a sua música nalguma categoria, aliás, Padovani sugere que se fale de pintura surrealista. E, num salto temático instantâneo, revela a sua perplexidade dirigida aos casos de gente que compõe demoradamente, desapegada da urgência do momento. “Não compreendo quem demora três anos e meio para fazer um conjunto de canções e gravar”, insiste. “Eu gravo tudo no imediato, a música para mim pertence à ordem da criação, da invenção e da espontaneidade. Gosto das coisas muito directas.” Le Monde Möö, composto durante uma semana, e gravado e misturado em dois períodos de igual duração, é ainda mais inquietante por isso – como pode um tão sumptuoso delírio dever tão pouco ao planeamento, soar tão perfeito, limado, sem um grama de excesso na sua total liberdade e não resultar de meses – se não mesmo anos – de depuração?

Pablo Padovani reconhece uma pequena adulteração na história de um processo de composição “espontâneo, quase naïf” em que frequentemente escreve textos e canções à primeira, não lhes aplicando qualquer retoque e privilegiando “o acaso e a abertura de portas ao inconsciente”. Afinal, havia já uns esboços mínimos de canções e um par de temas finalizado em idêntico processo de composição em tempo real quando se retirou durante uma semana para o campo, na Suíça, onde passou parte da infância. “Quando cheguei”, recorda, “ia carregado de adrenalina porque estavam a começar os festivais e tinha muitos concertos. Isso deu-me uma energia que possibilitou tudo isto.” O cenário também ajudou, reconhece. “Estava na casa onde cresci, de que tenho muitas recordações, e aproveito sempre para dar alguns passeios. As canções falam muito da natureza, das montanhas, dos lagos. Como Moodoïd é um projecto romântico e bucólico, a natureza participa verdadeiramente no processo.”

Não haja dúvidas: Je suis la montagne, no EP de estreia, era já toda ela um movimento de ascensão, de querer enfiar as vozes no meio das nuvens e de por lá ficar, mascarando com pouca discrição um subtexto sexual. La lune, mais rente ao solo, “é a recordação de um passeio nocturno com uma rapariga pelos campos do Sul de França, em que a luz da lua era a única forma de ver o que passava à volta”. A capa do single de La lune, tema recuperado agora no álbum, lembra as predilecções já apresentadas de Padovani, colocando um “motorista” de tapete voador em pleno voo, com um chapéu feito de chantili, diante de uma mão que lhe oferece uma couve-flor. Não fosse tratar-se dos Moodoïd e seria simplesmente patético.

 

Humores e emoções

Guitarrista do projecto Melody’s Echo Chamber, da cantora Melody Prochet (a quem deve a sua profissionalização na música), Padovani começou a fantasiar os Moodoïd nas digressões com o grupo. Foi também na estrada que se cruzou com outra figura importante na forma como ouvimos a sua criação. Kevin Parker, homem dos Tame Impala e companheiro de amores de Melody, voluntariar-se-ia para tratar das misturas do EP que antecedeu Le Monde Möö e com o qual Padovani fixou a sua sonoridade instantânea. Foi também nessa altura que lhe fez sentido juntar a palavra inglesa mood, segundo o sentido de humores e emoções, ao sufixo francês oïd, “utilizado na ficção científica para descrever doenças e coisas um pouco bizarras, mas também no calão para significar variações quotidianas de um qualquer conceito”. “Misturo os dois”, concretiza Padovani, “para definir uma emoção bizarra ou um humor estranho. E gosto do som.”

As emoções são aquelas que Le Monde Möö não esconde – “uma melancolia ou uma alegria muito fortes que senti quando estava a compor, com um fundo psicadélico, influenciadas pelo plano dos sonhos”. E é nesse plano suspenso que cabem os inevitáveis Tame Impala ou Connan Mockasin, mas também os franceses Serge Gainbourg, -M- ou Aquaserge, compilações de músicas do mundo de onde emergem sons avulsos, um exotismo via Os Mutantes, um jazz desbragado mesclado de soul com tanto de Sun Ra como de Prince, ou um classicismo pop entre as inclinações psicadélicas dos Beatles e as tendências cintilantes de David Bowie. Tudo coisas boas, unidas num disco estupidamente bom. Um disco em que entre o sonho de Padovani e a transposição para uma dimensão real parece – será isso possível? – não se ter perdido nada.

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