Uns com nome, outros nem isso: 57 mortos ficaram por reclamar

São sobretudo homens, com 60, 70 anos. E há 13 estrangeiros. A maioria tem um nome, mas alguns nem isso. Há alguns fetos. O Instituto de Medicina Legal fez as contas aos cadáveres não reclamados com os quais lidou em 2014.

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Entre os 28 corpos de adultos para os quais foi possível obter uma identificação, o mais novo tinha 27 anos e o mais velho 79 Sérgio Azenha

A um foi uma doença do coração que o matou, outro morreu por suicídio com uma arma de fogo, outro com uma tromboembolia pulmonar, outro por enforcamento. Há um homem que foi encontrado numa embarcação... Os gabinetes e delegações do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) tiveram à sua guarda, este ano, 57 cadáveres que não foram reclamados por ninguém.

Nem todos têm nome: 17 corpos não foram identificados, apesar de todos os esforços dos médicos legistas e das polícias. Em cinco casos não foi possível apurar sequer qual o sexo. Os dados agora revelados dizem respeito ao período de Janeiro a 30 de Novembro deste ano.

“Por vezes são corpos decompostos que não trazem consigo nenhuma identificação ou se trazem ela não é atribuída a ninguém. Por exemplo, trazem uma aliança, mas que não tem nome, nem data, nada. Isto existe em todo o lado do mundo, é relativamente vulgar. Agora não se pense que os não identificados são sempre esqueletos”, explica João Pinheiro, vice-presidente do INMLCF.

“Há tantas histórias, idosos que perdem o norte e vão por esses campos fora e nunca mais ninguém sabe deles. Pessoas que viajam, mas que não dizem aos familiares que vão viajar...”

As técnicas de identificação são cada vez mais sofisticadas, mas, em compensação, há “armas” com as quais já não se pode contar, como as etiquetas da roupa que, no passado, podiam ser tão úteis, ao indicar o nome de um alfaiate, por exemplo, pista eventualmente preciosa; hoje limitam-se a mostrar como quase tudo o que vestimos é “made in China”.

Entre os 28 corpos de adultos para os quais foi possível obter uma identificação, o mais novo tinha 27 anos e o mais velho 79 (a média de idades é de quase 61 anos). Mas também estes, tal como os anteriores, de nome desconhecido, não tiveram ninguém a reclamá-los nos serviços para lhes prestar uma última homenagem.

As situações são as mais diversas, mas há um dado que salta à vista: o peso dos estrangeiros. São 13 — três alemães, dois angolanos, dois ucranianos, um uzbeque, um marroquino, um indiano, um americano, um costa marfinense, outro austríaco... Os homens estão sempre em maioria (ver infografia).

Somam-se a estes mais um grupo: 15 “não adultos”, ou seja, “fetos/nados-mortos/nados-vivos”, na classificação usada pelo instituto. Não abunda informação sobre estes. Por exemplo: de onde vêm? “Não temos dados concretos, mas a proporção deve andar perto da seguinte percepção: um terço da ‘rua’, dois terços dos hospitais.”

Uma vez mais, diz João Pinheiro, sempre houve casos assim. “Não temos nenhuma criança”, explica ainda, depois de, no mês passado, algumas notícias terem dado conta de que em Lisboa a Irmandade da Misericórdia e de São Roque tinha acompanhado só este ano os funerais de seis crianças não reclamadas (na altura, um dos responsáveis da irmandade explicou ao PÚBLICO que se tratavam sobretudo de recém-nascidos). “Quando falamos de nados-vivos falamos de indivíduos que nasceram e estão nos primeiros dias de vida”, prossegue João Pinheiro. Já nados-mortos, são fetos que são dados à luz sem vida (e que resultam de uma gestação de pelo menos 180 dias). A estatística da Medicina Legal não discrimina quantos dos 15 “não adultos” são fetos, nados-vivos ou nados-mortos.

11 meses de espera
Alguns dos 57 corpos contabilizados poderão ter dado entrada no ano passado, ou até antes, nota-se ainda. O tempo médio de espera para que sejam sepultados varia entre os 11 meses (nos casos em que é possível chegar à identificação do corpo) e os sete meses (nos “não identificados”). Há um caso que chegou a esperar nas câmaras frigoríficas do gabinete médico-legal dois anos e meio.

Por que é que os identificados esperam mais do que os que não têm nome? Porque em relação aos primeiros há um esforço acrescido para encontrar uma família, prossegue o médico.

A lei é clara: só podem requerer actos relacionados com um cadáver o testamenteiro, “em cumprimento de disposição testamentária”, o marido ou a mulher do morto, a pessoa que com ele vivia em união de facto ou semelhante... enfim, há uma ordem a respeitar. Mas às vezes não há ninguém. O corpo fica nesses casos à guarda do INMLCF. E se nem a polícia, nem as pistas obtidas pelas perícias conduzem a alguém que esteja interessado em tratar do funeral, manda a lei que sejam as câmaras municipais a assumir a despesa.

Na maior parte dos casos são de facto as autarquias que pagam estes funerais. Mas há excepções. “Sabe o estado financeiro das nossas câmaras, não sabe?” João Pinheiro conta que são comuns os telefonemas dos coordenadores dos gabinetes médico-legais. “Dizem: ‘Tenho aqui este corpo e a câmara diz que não pode, que não tem...’”

E vão-se arranjando soluções. “Temos 20 e tal gabinetes e delegações: nove tratam directamente com as câmaras municipais; cinco tratam com as santas casas da misericórdia; temos duas juntas de freguesia que nos ajudam de vez em quando... Temos quatro estruturas onde se conseguiu fazer acordos com as empresas funerárias e eles acabam por fazer o enterro sem custos para nós — claro, caixões baratinhos, mas isto, nesta sociedade, não é só dinheiro, como às vezes se diz.” Em sete estruturas do instituto “passou-se a responsabilidade para o Ministério Público que, a maioria das vezes, resolve com as câmaras e as câmaras acabam por fazer”.

Estarão os casos a aumentar? As notícias parecem indicar que não. As últimas estatísticas noticiadas pelo PÚBLICO, com base em dados fornecidos pela anterior presidência do INMLCF, referiam 53 corpos à guarda dos serviços médico-legais em Fevereiro de 2012.

Nas novas estatísticas, o instituto nota que entre Janeiro e Novembro deram entrada nos serviços médicos legais 6588 cadáveres — ou seja, uma pequena fatia dos mais de 106 mil óbitos anuais registados no país passa pelo instituto de Medicina Legal. E que os 57 não reclamados representam apenas 0,87% desses que deram entrada — ou seja, também não esgotarão o universo dos mortos que ninguém quer; alguns ficam nas morgues dos hospitais e vão directos para os cemitérios.

A maioria dos que foram encaminhados para o instituto foram autopsiados: 50 (ver entrevista a João Pinheiro). As causas de morte são as mais variadas. Alguns suicídios (oito), sete vítimas de acidentes, uma vítima de homicídio, muitas causas indeterminadas (15). Porque nem sempre as autópsias permitem chegar a conclusões.

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