Uma barragem no Algarve salvou a campanha da Malcata

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Myrtilis foi encontrada morta no passado dia 1 de março Héctor Garrido/Banco Audiovisual da Andaluzia

Foi a maior campanha de sempre pela defesa de uma espécie animal no país. E tudo começou por causa de uma árvore. Não era ainda tanto o eucalipto, mas sim a pseudotsuga, uma conífera exótica que iria ser plantada em massa na Serra da Malcata no final dos anos 1970, para a produção de pasta de papel.

Alarmado com a potencial destruição do habitat do lince ibérico – que ainda vivia na região –, o biólogo Luís Palma, técnico florestal no então Serviço Nacional de Caça, alertou a sua chefia. “Primeiro tentámos resolver o problema pela via institucional”, recorda. Falaram com os promotores do projecto, tentaram um compromisso, mas sem sucesso. A florestação prosseguiu.

Luís Palma acabou por ir bater à porta da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), a histórica associação ambientalista criada em 1948. E dessa iniciativa nasceu a campanha “Salvemos o lince e a serra da Malcata”, que marcou o ano de 1979 e subsiste até hoje como um marco na história ambiental do país.

O método seria um abaixo-assinado. A associação tinha poucos recursos, mas conseguiu mobilizar a própria máquina da administração central, que se juntou à luta. O Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico pagou a elaboração e impressão de um cartaz icónico, com a face de um lince e os dizeres da campanha.

“Enviámos para as escolas e, para a nossa surpresa, começamos a receber imensas assinaturas, com as folhas originais já fotocopiadas”, lembra Jorge Palmeirim, biólogo que na altura estava na direcção da LPN. “Muitos professores nem sabiam que havia linces em Portugal”, completa.

No final, o abaixo-assinado foi subscrito por cerca de 60 mil pessoas. Nunca tinha havido tamanha mobilização popular por uma causa ambiental.

O movimento acabou por dar resultado. O projecto de florestação foi travado, fez-se um acordo para compensar os promotores com terrenos perto de Sines, a serra da Malcata foi classificada como reserva natural e o lince tinha tudo para viver em paz e saúde na região.

Mas isto não aconteceu. Duas doenças, a mixomatose e a hemorrágica viral , arrasaram em vagas sucessivas as populações de coelhos bravos e o lince desapareceu não só da Malcata, como de todo o país. Durante vinte anos, não houve políticas eficazes para trazê-lo de volta, até que o projecto de uma barragem, no início da década passada, ameaçou destruir mais uma zona de habitat do lince, em Odelouca, na serra algarvia.

A barragem de Odelouca estimulou uma guerra de trincheiras entre ambientalistas, que queriam travar o projecto, o Governo, que era o dono da obra, e a Comissão Europeia, que iria financiá-la. A obra chegou a estar suspensa e só foi adiante depois de várias alterações no projecto e de uma medida de compensação central: a construção de um centro de reprodução do lince ibérico, de onde vem Jacarandá, um dos linces que serão libertados esta terça-feira na zona de Mértola.

Na prática, foi preciso destruir uma zona de alta importância para os linces para os ter de volta. “Infelizmente, isto não é prova de maior eficácia das políticas de conservação”, avalia Jorge Palmeirim. “É lamentável, mas apesar de tudo é positivo. Dificilmente iríamos no curto prazo ter animais para fazer o repovoamento em Portugal”, completa.

Por mais decisivo que tenha sido, o paradoxal empurrão da barragem de Odelouca talvez não tivesse existido sem o trabalho prévio da campanha da Malcata em 1979. “Foi o ponto de viragem por parte da sociedade no reconhecimento da importância da conservação da natureza em Portugal”, diz Jorge Palmeirim.

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