D'Angelo: ascensão, queda e reparação de um mito da soul

Um dos maiores vultos da música soul, o cantor D’Angelo, lançou esta segunda-feira um novo álbum, numa altura em que poucos já acreditavam que viesse a suceder, 14 anos depois do último disco e de muitas histórias de excessos.

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Há exactamente um ano a cantora Beyoncé lançou, de surpresa, um álbum homónimo, furtando-se dessa forma aos mecanismos habituais de promoção. Embora o objectivo seja sempre o mesmo: excitar a curiosidade do grande público.

Desta feita a prenda natalícia é da responsabilidade de D’Angelo. Catorze anos depois de ter gravado um álbum de originais, regressa finalmente com novo disco - Black Messiah está disponível desde esta segunda-feira no iTunes - embora neste caso o efeito-surpresa seja menor porque desde 2009 que se vinha especulando que haveria novo álbum no horizonte.

Os dois estão em momentos diferentes. Beyoncé é hoje provavelmente a celebridade maior da música popular, enquanto D’Angelo tenta relançar a carreira. Quando este lançou o último álbum em Janeiro de 2000 ainda a cantora se encontrava nas Destiny’s Child, mas não é difícil idealizar que D’Angelo é também para Beyoncé uma grande referência.

Com apenas dois álbuns – Brown Sugar (1995) e principalmente com Voodoo (2000) – é como se tivesse instituído um cânone para a música soul das últimas décadas.

Com o primeiro assimilava o que vinha de trás (Marvin Gaye, Stevie Wonder, Curtis Mayfield ou Prince) e atribuía às suas canções soul uma qualidade orgânica que o haveriam de conotar com as movimentações neo-soul dos anos 1990, onde também se notabilizaram Erykah Badu, Jill Scott ou Maxwell.

O segundo álbum era sonicamente mais ambicioso, movimentos mínimos, balanço insinuante, ambientes lascivos, um clássico. É quase impossível olhar para a música soul, funk ou R&B que se seguiu, da mais exploratória à mais popular, sem entrever a influência que foi deixando atrás de si. Dos OutKast a Beck, de Spacek a Frank Ocean, de Kanye West aos The Weeknd, de James Blake a FKA Twigs, o leque de nomes que assumiu influências desse disco é infindável.

Era uma das daquelas obras que, coisa não muito frequente, se transformou num sucesso de vendas e, ao mesmo tempo, seduziu os melómanos mais exigentes, alcançando com facilidade o 1º lugar de muitas listas dos melhores de 2000 – foi o que aconteceu no antigo suplemento Sons do PÚBLICO.

Discos assim, tão marcantes, podem ser um peso, se os seus autores não forem capazes de gerir as expectativas. Foi isso que parece ter acontecido com D’Angelo que, depois da digressão do lançamento desse disco e de muitos prémios recebidos (entre eles dois Grammy), entrou numa travessia de excessos que meteu prisão por distúrbios, condução sob o efeito de álcool, posse de drogas ou curas de desintoxicação.

Uma viagem ao lado mais negro do êxito que apenas nos últimos anos parece ter vindo a ser atenuada. Em 2009 disse-se que se aprestava para lançar novo álbum e que o mesmo se iria intitular James River, mas nada aconteceu. Depois, há dois anos, o baterista e líder do grupo The Roots, Questlove, que havia trabalhado no passado com ele, afirmou que agora sim estaria mesmo de regresso, depois de superados problemas com adições que o tinham conduzido quase até à morte.

Nessa altura o músico, que é também conhecido pela participação no programa de TV de Jimmy Fallon, garantia que o álbum estava quase ultimado. E foram-se sucedendo, deste então, as muitas notícias que veiculavam o lançamento eminente de um novo disco, alicerçadas também no facto de se ter apresentado ao vivo com algumas canções novas.

A numerosa sequência de falsos alarmes chegou ao fim no domingo, com uma sessão de audição para convidados em Nova Iorque e com o lançamento de uma nova canção, a que se seguiu a totalidade do álbum esta segunda-feira, creditado a D’Angelo e ao seu colectivo The Vanguards. Uma digressão europeia, com início em Fevereiro, também já se encontra alinhada, pelo que este é mesmo o regresso firme de D’Angelo.

É possível que as doze canções que integram o disco tenham sido compostas em diferentes períodos, com a soul e o funk a serem puxados aos limites, com uma sonoridade densa mas espaçosa, estruturada a partir do balanço das linhas de baixo, da percussão e dos acordes de guitarra do próprio.

Quase quinze anos depois a sua voz mantém-se ilesa, maleável e apaixonada, mas também imprevisível, por vezes parecendo assumir vários personagens para uma só canção. Há algumas letras de consciência política – “all we wanted was a chance to talk / stead we only got outlined in chalk”, canta em The charade – o que não surpreende, tendo até em atenção a justificação para o título do álbum.

Black Messiah nada tem a ver com religião, nem com celebrações de individualidade, explica. É uma ode ao sentir colectivo, seja em Ferguson, no Egipto durante a Primavera Árabe ou nos protestos de Wall Street. É uma forma de afirmar que todos somos líderes, diz.

Há algumas colaborações (Questlove, Q-Tip ou Kendra Foster), mas é nitidamente um álbum muito pessoal. Como seria de esperar não tem a unidade conceptual do anterior. Nessa altura os ambientes eram luxuriantes, agora a sensualidade é exposta de forma mais tortuosa. Mas na sua diversidade acaba por manter os elementos essenciais que lhe granjearam culto, com um aparato sónico intenso – mais funk, na linha Sly Stone, do que soul, como Marvin Gaye. 

O ano passado o álbum de Beyoncé acabou por não figurar na lista de Melhores do Ano, porque foi lançado a meio de Dezembro, quando a maior parte das publicações já havia publicado as suas listas. Este ano, D’Angelo também já não vai a tempo, mas a sua carreira parece relançada.

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