Comer bacalhau no Natal é como rebobinar uma cassete

Somos os principais consumidores de bacalhau no mundo: comemos 25% do que se produz. Na noite de Natal, não há mesa em que não seja protagonista. De onde vem esta associação entre ser português e comer bacalhau?

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Não é pescado nas costas portuguesas, mas está praticamente em todas as consoadas. Cozido, “com todos”, no forno, com broa, o bacalhau é sinónimo de Natal. Quando é que começou exactamente a tradição em Portugal não se sabe com rigor. Mas a relação dos portugueses com o bacalhau seco é fortíssima: Portugal é o maior consumidor de bacalhau do mundo, sendo responsável por 25% do consumo global.

A associação entre a identidade nacional e este peixe espalhou-se pelo mundo fora. Por isso, no dia 24 de Dezembro, em vários países, em fusos horários diferentes, portugueses em Portugal e emigrados estarão a comer bacalhau e a associar o acto, mesmo que de forma inconsciente, à tradição. Durante o resto do ano, serão raros os chefs a trabalhar em Portugal que não tenham um prato de bacalhau na sua carta. Não há como fugir dele. Como nasce esta associação entre bacalhau e Natal? Como é que se cozinha e que relação têm os cozinheiros com um dos ingredientes que mais simbolizam a cozinha portuguesa?

A tradição nasceu porque a véspera de Natal era um período de abstinência de carne, explica José Manuel Sobral, autor de vários estudos sobre a relação entre o bacalhau e os portugueses. “Impôs-se porque chegava ao interior do país. A carne significava o pecado, a luxúria e portanto a véspera de Natal era também um dia de purificação até à meia-noite.” Mas, à medida que o consumo do bacalhau crescia e a sua culinária se alargava, “o que começou por penitência transformou-se em prazer”.

A popularidade estará ainda ligada ao facto de o bacalhau se ter ancorado na refeição “mais importante do ponto de vista familiar em Portugal”. Deu-lhe a importância social que tem hoje, transformando-o num alimento icónico.

Certo que o bacalhau chegava a quase toda a população, mas não chegava o mesmo tipo de bacalhau, nem os mesmos cozinhados, nem com a mesma frequência. Como hoje, na altura haveria também uma grande diferença nos preços, consoante a cura e a parte deste peixe. Depois, há pratos que têm pouco bacalhau — arroz de bacalhau, pataniscas — e outros que são as postas inteiras. Não seria, porém, algo que estivesse ao alcance dos mais pobres quotidianamente, analisa. “Em meados do século XIX, Francisco Inácio Santos Cruz escreve uma topografia médica de Lisboa em que fala genericamente do que era a alimentação nessa época e coloca o bacalhau do lado dos pobres, dizendo que os mais abastados preferiam o peixe fresco que chegava à cidade. Em finais do século XVIII, há um folheto da literatura de cordel em que o bacalhau e a sardinha dialogam e em que a sardinha diz que ela, sim, é a verdadeira comida dos pobres e o bacalhau já é de consumo burguês.”

Marcado pela emigração, e pelas migrações do norte para o sul, Portugal foi homogeneizando a ideia de ceia com bacalhau, batatas e legumes. “Sabemos que não era a prática do Alentejo [comer bacalhau]. Porque enquanto no Norte as pessoas comiam antes de ir à missa do Galo, no Sul era hábito comer-se depois de ir à missa, e no dia de Natal já se comia carne.”

Onde quer que os portugueses vivessem — e vivam —, era fácil levar bacalhau na mala. Os portugueses passam a ser associados ao bacalhau, “e muitas vezes pejorativamente”. “Ouvi histórias de emigrantes dos anos 1960 em França que diziam que lá lhes chamavam ‘bacalhaus’.” É José Manuel Sobral quem dá a imagem de sincronia: “Os portugueses estão um pouco por todo o mundo, há gente que pode estar na Austrália, nos Estados Unidos, algures em África ou no Brasil e está a comer o bacalhau como uma referência, uma memória e um modo de celebrar a família. De uma maneira não intencional, estão a marcar a identidade portuguesa.”

Foi — e será ainda — levado nas malas de emigrantes, sem qualquer intenção política, apenas porque aguenta bem as viagens sem se corromper. Chegou ao Brasil, às ex-colónias africanas, onde ainda hoje é também consumido no Natal.

“Há uma relação muito forte entre a comida e a identidade nacional. O bacalhau começa por ser um alimento de consumo frequente, que depois é transformado por quem escreve, trate-se dos autores da literatura de cordel ou mesmo da elite intelectual, em símbolo, em ‘comida dos portugueses’.”

Quando é que o bacalhau foi transformado em símbolo português é difícil de dizer rigorosamente. Embora os livros de cozinha apareçam apenas no século XVII, diz o antropólogo, à medida que se começa a falar em cozinha portuguesa, surgem as referências ao bacalhau. Eça de Queirós escreve uma carta a Oliveira Martins em 1884, em que afirma: “Os meus romances no fundo são franceses, como eu sou em quase tudo um francês, excepto num certo fundo de tristeza lírica, que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho e no justo amor pelo bacalhau de cebolada.” Esta é a mais importante referência à associação entre o bacalhau e uma “essência portuguesa” que o antropólogo encontrou, em que o mesmo é associado à “tristeza lírica” (de que a saudade seria uma expressão) e ao fado. Mas, já em inícios do século XIX o bacalhau era apresentado como o “fiel amigo” dos portugueses.

Porém, já antes, no século XVI, há referência à presença do bacalhau importado no porto de Lisboa, e ele aparece na literatura portuguesa, por exemplo, em Gil Vicente (séculos XV e XVI). No século XVII, as fontes sobre o bacalhau generalizam-se, continua José Manuel Sobral, aparecendo nas balanças comerciais. Portugal pescou bacalhau no Noroeste atlântico entre finais do século XV e, “com toda certeza”, durante o século XVI, mas seria excluído dessas águas “quando formou uma união dinástica com a Espanha porque os inimigos de Espanha, nomeadamente os britânicos, perseguiam os navios portugueses”. A pesca portuguesa cessou então até ser retomada na segunda metade do século XIX, atingindo o seu máximo com o Estado Novo em Portugal. 

O bacalhau só se torna objecto de uma culinária mais sofisticada no século XX, continua o antropólogo. E o bacalhau fresco nunca será tão popular quanto o seco e o salgado. Porque foi esse que ficou no paladar, defende. “Há transmissões de paladar que são feitas desde a primeira infância. Os sabores deixam a sua impressão no cérebro e na nossa infância aprendemos a gostar de determinado tipo de sabores e a abominar outros. Acho que o bacalhau fresco não é tão aceite porque as pessoas vêem ali um peixe e não bacalhau.”  

No Natal, a forma que se impôs foi a do bacalhau cozido com batatas e legumes, temperado com azeite, uma das mais rápidas e tida como das menos sofisticadas. Mas é difícil datar historicamente o início desta tradição, diz, pois na maior parte do tempo as práticas alimentares não são noticiadas, “são coisas tidas como tão banais e em que ninguém repara”. “Expressões como as ‘mil e uma maneiras de fazer bacalhau’ aparecem em final de século XVIII.”

Se é obrigatório ou não um cozinheiro pegar no bacalhau, José Manuel Sobral não sabe. O que sabe é que, dada a popularidade deste peixe e dado o facto de se ter tornado um símbolo português, é “uma questão que os cozinheiros têm de enfrentar”. 

Que o diga Vítor Sobral, o cozinheiro que é autor de um livro com 500 receitas de bacalhau (sem relação de parentesco com o antropólogo). Andou a fugir deste peixe durante anos até perceber que era inevitável. Hoje está prestes a abrir um restaurante só de bacalhau em São Paulo, no Brasil, onde 70% das vendas da sua Tasca da Esquina brasileira são… de bacalhau. “Comecei a viajar como cozinheiro há 25/26 anos e irritava-me quando associavam Portugal ao bacalhau e às sardinhas. Depois pensei: ‘Um dia destes, vou ter é de reverter isto a meu favor.’ Até que resolvi fazer o livro do bacalhau e explorar tudo o que era possível explorar. Hoje, os portugueses são catedráticos do bacalhau”, conta, enquanto prepara um bacalhau com todos que sugere para a ceia (ver as receitas na Revista 2 online).

A potencialidade de transformar o bacalhau em pelo menos 500 versões diferentes deve-se às suas texturas — “pode-se trabalhar em posta, lascado, pode-se desfiar, pode-se trabalhar o rabo, as barrigas, pode-se desmanchá-lo…” Fresco é que não entrou na tradição. Vítor Sobral acha que “aí há muita concorrência com outros peixes” e fica “uns furos abaixo, não há hipótese”. Mas, de todos os peixes que conhece, o bacalhau é o “que fica muito mais interessante seco do que fresco”, afirma. “Se o disser a um norueguês, ele diz que sou louco. A afirmação é tendenciosa, é de ser português.”

Este ano, Sobral, que partilha sempre a cozinha com a mãe no Natal, vai fazer a recriação do bacalhau com todos, sem cenoura nem nabo, mas com ovo e couve — vai ao forno e tem uma crosta de broa. O bacalhau da consoada varia todos os anos. “É tradição ficar o mais próximo da origem, mas numa família de cozinheiro não haver uma inovaçãozinha parece mal”, comenta na Tasca da Esquina, em Lisboa.

Mas, antes de o transformar, a escolha do próprio bacalhau é fundamental. Vítor Sobral aconselha: escolha-se um extremamente seco. “Se for demolhado mole, não demolha tão bem. Depois tem de ter cor de palha, não ser branquinho. Existem três tipos de bacalhau no mercado: o que tem cura de sal três meses, o que tem cura de sal seis meses e o que tem cura de sal de nove meses — que é o mais rijo, demora mais tempo a demolhar, mas é o melhor.” Demolha-o, assim, em água fria durante quatro dias. É que o bacalhau perdeu água na seca e na salga, portanto “é isso que precisa” na demolha.

Vítor Sobral não usa leite na demolha — a usar, será depois. Mas Marlene Vieira, sim. No restaurante Avenue, em Lisboa, mostra um prato com puré de batata e queijo da serra derretido, em cima bacalhau frito, almofadas de batata frita e pétalas de couve-de-bruxelas — por cima, põe um molho de cebola caramelizada. É um prato que tem na ementa recentemente e que faz uma homenagem ao minhoto bacalhau à Narcisa, normalmente acompanhado de cebolada e de batata frita.

Porém, em casa de Marlene, do Norte, a consoada tem bacalhau tradicional com grão — e tem também polvo. “O bacalhau é um ingrediente comum de norte a sul, e toda a gente usa.” Qualquer cozinheiro tem necessariamente, a dada altura, de pegar nele. Porque “a relação é muito forte”, diz, com convicção. “É um prato que nos traz imensas recordações: ninguém sabe explicar porque é que no Natal sabe diferente, mas sabe. A cozinha traz sempre memórias e, quando comemos bacalhau, é como se estivéssemos a rebobinar uma cassete. E, quando saboreamos o bacalhau com estas memórias, é uma coisa única. A comida é tão importante porque nos faz avivar memórias, rebobinar cassetes na nossa cabeça.”

Marlene lembra-se do cheiro das couves que vinham do quintal da avó a cozer, “uma coisa que me intoxica o cérebro”. Lembra-se do forno a lenha. E de ver o pai esmigalhar o alho com azeite no prato primeiro, e só depois começar a pôr o bacalhau, a cenoura... “O meu pai ensinava a comer tudo ao mesmo tempo, aprendemos a pôr tudo ao mesmo tempo no garfo e é muito diferente o sabor.”

A ligação com o passado é algo essencial num chef, defende, porque é assim que se consegue “tirar o melhor de nós”. A associação do bacalhau à ideia de uma identidade nacional passa por “manter as nossas raízes”. “Os restaurantes todos têm bacalhau, mesmo os que não são portugueses. Porque é realmente importante para os portugueses. Somos incapazes de pensar num menu sem pensar no bacalhau. E os estrangeiros procuram-nos por causa disso, porque ninguém sabe cozinhar bacalhau como nós, nem aprofundou o trabalho do bacalhau como nós. Tenho clientes brasileiros, franceses, americanos que querem bacalhau, não olham para o resto do menu — querem experimentar, ver como cozinhamos. Eu irei ter sempre um prato de bacalhau.”

Como Vítor Sobral, também o chef João Rodrigues, do Feitoria, em Lisboa, andou a resistir ao bacalhau. Só recentemente, há cerca de seis meses, é que fez “uma inflexão” e criou uma entrada que se chama “como bacalhau à Braz”, que sugere para este Natal. Tem todos os ingredientes que estarão à mesa numa consoada — o bacalhau, as batatas, o azeite e alho...

Para a mesa, vem uma taça de cor verde-água com as batatas-palha fritas, as lascas de lombo de bacalhau, uma emulsão, a gema de ovo cozida a baixa temperatura coberta com azeitona desidratada e rebentos de salsa. O cliente tem de participar na confecção do prato e misturar com duas colheres. A ideia é colocar questões sobre o que é tradição e modernidade. “É um pouco estranho pensarmos que o bacalhau é tão representativo da nossa cultura”, diz no Feitoria, que tem estrela Michelin há quatro anos consecutivos. “Sempre que pensamos em algo característico do nosso país, pensamos em bacalhau. Os estrangeiros quando vêm a Portugal querem comer bacalhau.” Mas ainda não conseguimos vendê-lo como os italianos vendem o parmesão, por exemplo. “Há toda uma cerimónia à volta do parmesão, que obedece a certas regras.” Para o bacalhau, não foi criado um equivalente, lamenta. Na sua noite de Natal, João Rodrigues vai comer o bacalhau tradicional, cozido, com “boas couves, ovo, bom vinho e bom azeite”. “É uma festa de família. A minha família tem uma base forte de sustentação, vemos a família como um pilar. Isto é passar algo de geração em geração. Por isso mantém-se igual. Claro que à volta do bacalhau depois há outras coisas, vamos inovando e fazendo diferente, mas o principal, o nuclear, é isto.”

A mudança, a acontecer, é em quem o cozinha. Este ano, talvez seja ele a substituir o pai. O que terá de diferente? “Se calhar, não vou deixar ferver a água onde o bacalhau está, as couves não vão estar cozinhadas de mais… São pormenores que podem melhorar o conjunto.” Pelo menos era isso que estava acordado, mas nunca se sabe se o pai muda de ideias à última hora. “Chega a uma altura em que há uma passagem de testemunho”, comenta. Nada como a consoada de Natal, e um bom bacalhau, para o fazer.

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