Economistas vêem no plano Juncker um plano “não-Juncker” para a dívida

Estudo de Ricardo Cabral, Francisco Louçã, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos considera o novo programa de investimento insuficiente para substituir uma reestruturação da dívida portuguesa. Economistas reabrem debate sobre a renegociação.

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Manifestação contra a austeridade e a troika, nos Aliados, no Porto, a 15 de Setembro de 2012 Manuel Roberto

Quando, em Julho, quatro economistas portugueses lançaram uma proposta de renegociação da dívida portuguesa, procuravam dar resposta a uma pergunta: como reestruturar. Os caminhos são vários. A resposta de Ricardo Cabral, Francisco Louçã, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos, propondo alterar os prazos e os juros da dívida, continua a não ser consensual.

E agora, num novo documento de trabalho, os autores lançam mais dados para a discussão, com seis cenários alternativos e novas perguntas. Uma delas é esta: que impacto tem na dívida pública e externa o tão falado “plano Juncker”, o programa de investimento público-privado europeu prometido pelo novo presidente da Comissão Europeia?

A resposta: mesmo que o programa de investimento europeu atingisse toda a sua dimensão, mobilizando os 315 mil milhões de euros esperados pelo presidente da Comissão Europeia, a reestruturação da dívida portuguesa seria sempre necessária para corrigir o problema estrutural das contas públicas.

O documento assinado pelos quatro economistas vai ser entregue aos grupos parlamentares na segunda-feira, antecipando um debate que durante a semana vai animar os trabalhos na Assembleia da República, em particular na terça-feira, com a Conferência sobre a Dívida Pública, que vai reunir na sala do Senado economistas, investigadores, advogados portugueses e estrangeiros a debater experiências de reestruturação, as questões jurídicas que um processo destes convoca, e soluções para Portugal.

No relatório Cenários de Reestruturação da Dívida Portuguesa, os quatro economistas identificam fragilidades no plano de investimento anunciado por Jean-Claude Juncker, a que chamam um “programa de engenharia financeira”, pelo facto de os fundos públicos de investimento serem “radicalmente menores do que os 315 mil milhões de euros” anunciados.

O programa proposto por Juncker, alertam os economistas, baseia-se num “financiamento europeu muito reduzido, tomando como ponto de partida o Orçamento da União, sem qualquer reforço (16 mil milhões de euros), a que se alia o Banco Europeu de Investimento com uma dotação de 5000 milhões de euros”. Para chegar aos 315 mil milhões, a Comissão está a contar com um “efeito multiplicador” (15 vezes o valor inicial adiantado pelo sector público). Um montante que os autores do estudo dizem não ser sustentado “por nenhuma experiência recente ou passada”, nem corresponder a uma “expectativa razoável de investimento privado”.

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Ponto, contra-ponto
Para fazer o contraponto ao plano do novo executivo comunitário, os economistas foram estudar o que aconteceria, em termos de impacto na dívida portuguesa, se 300 mil milhões de euros correspondessem “a novos dinheiros públicos a fundo perdido”. É um cenário a que Louçã (ex-líder do BE), Ricardo Cabral (Universidade da Madeira), Pedro Nuno Santos (deputado do PS) e Eugénia Pires (Universidade de Londres) chamam simbolicamente – e com alguma ironia – o “Plano não-Juncker”. E chegam à conclusão de que o projecto “não é suficiente para alterar a dinâmica de dívida enfrentada pelo país”, mesmo se o programa fosse concretizado “em toda a dimensão proposta por Juncker e mobilizando os fundos privados que constituem o essencial do seu financiamento”.

Para ter um efeito idêntico ao programa de reestruturação da dívida apresentado em Julho, o plano de investimento europeu “teria de ser de dimensão 24 vezes maior”. “A reestruturação da dívida é sempre incontornável para corrigir os problemas estruturais das contas públicas e da economia portuguesa”, acentuam.

Para entender este e os outros cinco cenários equacionados pelos autores, recuemos até à solução técnica proposta em Julho, que serve de base de comparação a todas as outras. Nesse cenário, apelidado de Proposta Sustentável, defende-se a redução dos juros para 1% e uma extensão dos prazos de reembolso, que passariam para 2045-54, aplicando ao mesmo tempo uma resolução bancária sistémica cujo objectivo passaria por sanear os passivos bancários (por redução da dívidas das instituições financeiras), para que isso se reflectisse na diminuição da dívida externa. Este plano, estimam, permitiria uma redução da dívida pública para 71,8% do PIB (segundo as regras de Maastricht).

Se, em vez de uma renegociação nestes termos, a reestruturação fosse substituída apenas por financiamento europeu, o programa Juncker na sua “forma mais benéfica” (ou seja, no plano “não-Juncker”) teria um efeito muito limitado, porque a dívida pública manter-se-ia em cerca de 130% do PIB (está actualmente em 131,6%), alertam os economistas.

O plano representaria apenas 4,2% do impacto do programa sustentável, não tendo “a dimensão necessária para alterar a dinâmica da dívida externa (e doméstica) e assim para alterar o condicionamento e dependência económica do país”.

Pressupôs-se que Portugal receberia, neste cenário óptimo, 1,7% dos fundos (o equivalente ao seu peso no PIB da zona euro) – transferências de 1700 milhões de euros durante três anos, a fundo perdido, para aplicações públicas e privadas.

“Comparado com estes cenários, a nossa proposta é mais robusta”, sublinha Francisco Louçã, lembrando que, mesmo outros cenários equacionados na proposta, não são tão fortes do ponto de vista negocial. “A realidade do plano Juncker é uma fracção daquilo que é o nosso cenário de ‘plano não-Juncker’, não tem impacto nenhum”, enfatiza Ricardo Cabral. “É preciso um plano com dimensão e com capacidade de mudar. O único ao alcance das autoridade portuguesas é esse [a Proposta Sustentável]”, que o economista diz ser “uma opção realista” e que, “mesmo assim, exigiria responsabilidade orçamental”.

A (in)sustentabilidade
No documento, os autores rebatem ainda os argumentos de outros autores que defendem que a dívida é sustentável, avisando que essas simulações se baseiam “em premissas em relação ao crescimento económico e taxa de juro que não se afiguram de todo realistas”. No estudo, só não foi considerado o cenário de nada fazer, porque, vinca Ricardo Cabral, “ou enfrentamos o problema com realismo ou então não vamos lá”.

Com a actividade económica a abrandar e a Europa a viver um período de inflação muito baixa, o Banco Central Europeu (BCE) tem alimentado a expectativa de que vai começar a comprar em breve títulos de dívida pública para estimular a economia europeia. E já deixou claro que quer fazer chegar à economia um bilião de euros de estímulos.

No mesmo estudo, os quatro economistas debruçam-se sobre o efeito potencial do plano protagonizado por Mario Draghi na economia portuguesa. A conclusão é a mesma. As armas do BCE não afastam a necessidade de uma reestruturação da dívida, insistem. A “monetização da dívida em grande escala” por parte da autoridade monetária implicaria apenas “uma ligeira redução do valor presente da dívida bruta não consolidada e da dívida externa bruta tanto das administrações públicos e do Sector Empresarial do Estado como de Portugal”. Louçã aplaude o plano Draghi, que considera “razoável no contexto da crise do euro” para combater o “risco perigosíssimo da deflação”, mas avisa que “não evita a assimetria estrutural do euro”.

Para além destes dois cenários, os economistas lançam mais quatro hipóteses. E consideram todas mais limitadas do que a Proposta Sustentável, argumentando que em qualquer uma delas os níveis alcançados para a dívida mantêm “Portugal numa situação de protectorado” e de “dependência insustentável”.

Os economistas vincam ainda que a solução apresentada em Julho propunha um “processo de resolução bancária sistémica para ter efeitos sobre o endividamento externo”, cuja “pertinência” dizem ter sido revelada pela crise no Grupo Espírito Santo e no BES.

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