Mariana e Carlota querem ter um único corpo

Levando consigo duas gerações da dança portuguesa, Mariana Tengner Barros e Carlota Lagido vão atrás de uma quimera: fundir-se num tronco comum, de onde despontam duas cabeças. É Golden, de Tiago Cadete, para ver hoje e amanhã no São Luiz, em Lisboa.

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SUSANA PAIVA
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A proposta de Tiago Cadete era trabalhar com duas bailarinas de gerações distintas que nunca tinham tido um palco para se encontrarem. Mas quando lhes pediu uma primeira foto de promoção, a partir do Brasil, antes sequer de haver qualquer esboço de movimento, aquilo que recebeu foi uma imagem das duas, Mariana Tengner Barros e Carlota Lagido, vestidas de preto sobre um fundo preto, a primeira sendo lambida nos cabelos pela segunda, os rostos como dois espectros reluzentes no meio da penumbra. Se a ideia inicial, ocorrida durante um jantar dos intérpretes de Andiamo!, peça de Francisco Camacho apresentada em Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, fora colocá-las com os respectivos patrimónios artísticos a descobrirem-se em cena, a fotografia de António MV mudou tudo. Cadete viu nela um único corpo, de onde despontavam duas cabeças: uma quimera, um ser híbrido roubado à mitologia grega que reconfigurava em absoluto o tabuleiro onde tinha imaginado que a peça se jogaria.

Após esse momento de epifania, Tiago Cadete e as duas bailarinas perseguiram durante um mês de trabalho a ideia de fusão sugerida pela fotografia. Não tanto pela via de uma temática comum, feminina e autobiográfica, que Mariana diz identificar em ambas, ou do tipo de personagens e de “uma certa decadência glamorosa” que Carlota entende ser o seu caminho comum. Aqueles que pareciam ser os atalhos para os seus mundos foram tapados e as bailarinas acabaram lançadas para um cenário muito distante daquele que tinham antecipado para o seu encontro – “cheio de perucas loiras, lantejoulas e de garrafa de whisky na mão”, hiperboliza Carlota Lagido. Para a fusão que se tornou o horizonte de Tiago Cadete, o coreógrafo resolveu intimar uma corte de fantasmas do mapa coreográfico de ambas. “Interessava-me bastante recuperar alguns materiais performáticos que elas têm de outros espectáculos, mas que se recodificam em cena”, explica. “Alguém que conheça bem o trabalho das duas consegue identificar esses fantasmas, mas no final são apenas simulacros. Nunca chegam a ser o que eram porque estão codificados de outra forma, ganham um outro sentido neste espectáculo.”


“Mais do que as personagens dos nossos universos”, acrescenta Mariana, “quem vir esta peça vai encontrar os nossos corpos como pessoas, muito mais reais, ainda que a peça seja formalmente muito abstracta.” Ou seja, a fantasmagoria de que Golden se alimenta às golfadas, que paira sempre no ar enquanto Mariana e Carlota se vão ligando na construção desse corpo comum por um procedimento que descrevem como alquímico, farejando e tacteando o corpo da outra, procurando uma forma de se ligarem como se se formasse uma liga de ouro – daí o Golden – é pouco impositiva, é como uma mão invisível que empurra uma na direcção da outra. Fumos de personagens que nunca se corporizam, porque essa seria uma forma de sublinhar os universos pessoais e, na coreografia de Tiago Cadete, a regra é anular os egos em favor da construção de uma nova entidade comum. Uma quimera, portanto, mas sem a evocação terrorífica do cruzamento mitológico entre leão e cabra, antes procurando nos limites físicos ditados pela realidade a tal fundição sensual entre dois seres distintos.


 

Insuflável abjecto

A intromissão da realidade (numa peça que tenta escapar o mais possível às suas garras) acontece naturalmente quando a cabeça da crise espreita em palco. O cenário parece o de ressaca de uma catástrofe natural, com uns troncos partidos largados num espaço de devastação em que os movimentos de Mariana e Carlota parecem lembrar-nos da obstinação do belo em grassar na mais desconsolada das paisagens. É essa asfixia do mundo artístico que as bailarinas invocam para justificar, em parte, a construção de uma peça à distância, com um tempo de criação concentrado num mês e em que Tiago, entretanto emigrado para o Brasil, se viu obrigado a prescindir do seu habitual controlo, deixando que a autonomia de Mariana Tengner Barros e Carlota Lagido conduzisse a peça em função de estímulos que ele lhes ia enviando, sob a forma de videoclips, textos ou quaisquer rastilhos que pudessem estabelecer uma relação com o material que foram desenvolvido até (e mesmo após) a antestreia no Citemor, em Agosto.

“Tendo escolhido trabalhar com pessoas de quem gosto, tenho de confiar e delegar”, defende Tiago Cadete em chamada por Skype com o Ípsilon, a partir do Rio de Janeiro. “Às vezes os directores têm muito o lugar da pertença do objecto, tornamo-nos super controladores. Neste caso, a interpretação é sobretudo delas.” Exemplo dessa dinâmica é a inserção de um insuflável em cena, um corpo estranho, perturbador, de forma placentária, com o qual as bailarinas são forçadas a relacionar-se. “Gosto de objectos que criam uma espacialidade diferente”, concede o coreógrafo. “Tem esse lugar de placenta, mas pode ser também uma medusa, uma pedra. Só que não é concreto e vai sendo configurado com a presença delas. Funciona, acima de tudo, como um elemento revelador que faz com que elas não estejam sozinhas.” Adoptando a leitura do dramaturgista João Oliveira, especialista em estudos de género, Cadete passou igualmente a ver naquele elemento “um abjecto, mais do que um objecto”.

Passados quatro meses sobre o Citemor, Golden apresenta-se hoje e amanhã no Jardim de Inverno do São Luiz, em Lisboa, incluído na programação do festival Temps d’Images. Mostra-se agora numa forma não cristalizada, graças também ao desapego proporcionado pelo envolvimento dos três noutros projectos. Transformado pelo tempo, refeito com pequenas variações em torno da mesma quimera, Golden é visto por todos como um exemplo de resistência às adversidades do país e como uma vitória das relações artísticas sobre o imperativo da distância e da emigração. Tiago está longe, no Rio de Janeiro, a acompanhar pelo Skype os ensaios de Mariana e Carlota. Como se, a par da fusão das bailarinas, ocorresse uma outra, oculta. Como se, afinal, fosse seu o corpo no escuro ao qual duas cabeças são acopladas.

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