Caos, queda e ruína – vamos todos ao chão com Faulkner

O teatromosca leva a palco O Som e a Fúria, no Cacém. Parte de um projecto em que se desenha a ruína do mundo ocidental.

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Começa numa entrevista. O Som e a Fúria, este a que assistimos guiados pelo teatromosca, diz-nos, antes de mais, que para William Faulkner nenhuma das suas obras estava à altura dos seus padrões e que, portanto, escrevia sempre contra si próprio, lutando em vão contra os inalcançáveis critérios a que precisaria de obedecer para se cumprir como autor. Escrevia para a impossibilidade e para dela se convencer novamente, reincidindo como se quisesse apenas atascar-se na sua própria crítica. Feitas as contas, falhava uma e outra vez. E dizia ainda, nessa citada entrevista a Jean Stein empunhada em palco, que cada nova tentativa era encostada à parede numa impiedosa comparação com o livro que lhe causara “mais mágoa e angústia, como uma mãe que ama o filho que se tornou ladrão ou assassino mais do que aquele que se tornou padre”. O Som e a Fúria era esse título, reescrito de diversos pontos de vista num atormentado anseio de conseguir contar devidamente a história imaginada.

Pedro Alves, actor e director artístico do teatromosca, adverte. “O Faulkner era um tipo corrosivo e subversivo e esta ideia em que ele transmite a falha constante faz-se em jeito de brincadeira”, argumenta. As personagens Benjy, Quentin e Jason, que vão sucessivamente assegurando os monólogos em que tentam contar a história de uma família, são assim justificadas, embora o dispositivo narrativo de Faulkner signifique tudo menos uma pueril consequência do seu crivo de qualidade. Mesmo que esse possa ser o ardil, ao partir do relato de um Benjy que, devido a um défice cognitivo, apenas pode relatar o “como aconteceu” e nunca o “porquê”. “Depois do texto terminado, ainda foi necessário ao Faulkner escrever um epílogo e um apêndice para tentar concluir a história”, continua Pedro Alves, apreciando a provocação. “Logo aí ele dá-nos a ideia de que é um tipo divertido, um escritor com um humor muito particular. E deixa-nos a porta aberta para pegarmos nos textos e os colocarmos em palco – para também tentarmos falhar.”

O Som e a Fúria convive, assim, desde o primeiro segundo, com a ideia de inadaptabilidade. Premissa que, na verdade, se torna libertadora. Daí que, em vez de um epílogo e de um apêndice, o livro transformado em peça de teatro descambe próximo do fim numa endiabrada coreografia que acaba por derrubar cada um dos actores e das bailarinas, sobrando apenas um músico que circula entre os corpos caídos tocando um Bolero de Ravel que soa a marcha fúnebre. “Para nós, é desejável esse risco”, admite o encenador. “Até porque desde há muito que era um texto que me cativava bastante.” De facto, a haver razão maior do que todas as outras para a presente investida do teatromosca em três grandes romances da literatura norte-americana – em 2013 foi a vez de Moby Dick, de Herman Melville, daqui por um ano chegará Meridiano de Sangue, de Cormac MacCarhty –, essa razão tem início no fascínio indizível que Pedro Alves tem desde criança pelo tomo de O Som e a Fúria. Mais do que A História de O, marco da literatura erótica de Anne Desclos, ou de quaisquer outros títulos com que se cruzava na biblioteca do pai, era a obra de Faulkner que ficava a remexer-lhe na imaginação do mundo ficcional guardado dentro daquelas páginas.

Cedo começou, de facto, a associação entre O Som e a Fúria e a noção de impossibilidade ou de constante recuo na vida de Pedro Alves. Tal como cada um dos narradores devolve a história ao passado e lhe nega um definitivo avanço, também o encenador começaria por voltar repetidamente ao início do livro, impelido por uma enorme curiosidade mas vencido sempre ao fim de meia-dúzia de páginas pelo discurso arisco e desordenado de Benjy. Só que o “espírito transgressor e arriscado” do livro ficaria sempre a latejar e a implorar por nova oportunidade. Aos poucos, o livro finalmente revelou-se e tornou-se uma peça central desta trilogia que Pedro Alves define como “uma investigação em torno dos Estados Unidos como pilar da cultura ocidental em frágil terreno, em terreno pantanoso”. O mesmo olhar, defende, poder-se-ia desenhar a partir dos clássicos gregos, enquanto mote para a encenação de textos em que o Ocidente é retratado como decadente, doente, podre, em ruínas. “O Faulkner representa isso muito bem, o Melville também já o ensaiava e o McCarthy põe tudo no limite, à beira do abismo. No final de Meridiano de Sangue, temos a queda completa”, antecipa, “para que eventualmente numa teoria cíclica possamos começar tudo de novo”.

Em O Som e a Fúria, o tempo é o da ruína e de uma queda anunciada. “Estamos perante o caos e a catástrofe – é isso que nos interessa pôr em palco”, reconhece Pedro Alves. E é esse lugar que vemos desfilar e ser arrastado para o chão ao longo de duas horas.

A desgraça do Sul

Os três monólogos de Benjy, Quentin e Jason oferecem o retrato do declínio da aristocrata família Compson em Jefferson, estado do Mississípi. Do descalabro financeiro à falência moral e espiritual, o texto é semeado num cenário de absoluto conservadorismo sulista, ao mesmo tempo que os monólogos convidam a uma vida de palco, em três modos solitários – “Benjy não tem colchões na narração, Quentin faz um monólogo interior e Jason um monólogo para fora, numa tentativa de comunicação com o exterior”, classifica o encenador. E as palavras aparecem constantemente atravessadas pelo contexto histórico e social no virar para o século XX, de um Sul vergastado pela Guerra Civil, em transição para o fim da escravatura e para um mundo industrializado, engasgando-se no próprio vómito da perda de poder. Escolhida para cenário dos Compson, a vida na pequena cidade corre, para o teatromosca, como um film noir com um final de potencial cada vez mais desastroso. O choque, assim o sublinha a adaptação teatral do texto de Faulkner, coloca em paralelo um conflito entre o passado e a modernidade, não apenas no que diz respeito à estrutura do texto e à própria narrativa, mas também em relação a um pequeno universo em que os enquistados valores tradicionais sulistas definham e caem por terra.

Na estreia de O Som e a Fúria no Auditório Municipal António Silva (Cacém) – a peça terá em 2015 uma carreira estendida, de Janeiro a Setembro, passando por Cascais, Braga, Lisboa (Teatro Meridional e, mais tarde, Teatro da Politécnica), Amadora, Guarda, Maia, Almada e Aveiro –, hoje e amanhã, Pedro Alves pretende também contrariar aquilo que “à primeira vista é um texto misógino, onde não é dada voz às mulheres, que são a expiação de todos os males e a causa daquela família, da desgraça do Sul dos Estados Unidos”. “Ao mesmo tempo”, argumenta, “Faulkner dá-lhes protecção, mantém-nas longe de toda esta bagunça, esta tralha e este caos. A narração está entregue aos três homens e são eles que caem com esta casa e com esta família”. Se eles as insultam e maldizem, a verdade é que nas personagens femininas, sem direito à voz autoral, reside a réstia de dignidade que pode entrever-se no texto de Faulkner. A forma, precisamente, como os homens falam das mulheres funciona, assim, não tanto como meio para o leitor/espectador as conhecer, mas para revelar o declínio que os consome. Pedro Alves diz-se, por isso, arrebatado pela possibilidade oferecida pelo autor norte-americano para chegar “às questões de género, raciais e teológicas através de uma leitura com muito espaço – e isso é tão inteligente quanto bem desenhado”.

Aos poucos, terminados os três monólogos, os homens voltam a tomar a voz, mas passam, primeiro, a contar com três mulheres que corporizam os seus relatos, obedecendo às suas palavras, manipuladas aos nossos olhos por aquilo que eles escolhem contar. Tornam-se corpos sobre os quais as palavras são projectadas – “quase uma tela em branco colocada no palco”, diz Pedro Alves. “Através dessa presença física, sensual, provocatória, rasgada, fracturante e de atrevimento, no quarto capítulo vão sendo destruídas toda a narrativa até então criada, todas as verdades que fomos ouvindo, e o terreno vai sendo minado por essa presença feminina”. Depois, largando a tela em branco, as três bailarinas vão rodopiando, criando um vórtice que suga as personagens à sua volta e só descansa quando já não houver se não escombros. Até ao ponto em que já só poderão ser varridos.

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