Ricardo e o leopardo

Dizer que o BES não faliu mas que “foi forçado a desaparecer”, como afirmou Salgado insinuando misteriosas teorias da conspiração, é do domínio da mais despudorada desvergonha.

Devo a Ricardo Salgado ter-me ensinado há dois dias um bonito provérbio chinês, que eu desconhecia: “O leopardo quando morre deixa a sua pele. O homem quando morre deixa a sua reputação.” A sabedoria chinesa fica bem em qualquer lugar, mas, pelos vistos, Ricardo Salgado decidiu invocar uma máxima que não estava interessado em cumprir.

É que, no estrito campeonato reputacional, aquilo a que eu assisti na comissão de inquérito ao caso BES foi a um velho leopardo a fazer tudo por tudo para salvar a sua pele, mesmo que para isso tivesse – como teve – de assassinar a sua reputação enquanto gestor.

Ricardo Salgado só tinha dois caminhos possíveis para a sua defesa: ou admitir que era muito aldrabão, ou admitir que era muito incompetente. Compreensivelmente, optou pela incompetência. Afinal, o homem que se apresentou na Assembleia da República parece que nunca pensou, nem quis, ser o Dono Disto Tudo – “Dono Disto Tudo é o povo português”, afirmou democraticamente. E, segundo a sua notável tese, Salgado partilhou com o povo português a democrática ignorância acerca daquilo que se passava no Banco Espírito Santo: ele não sabia de nada (foi o contabilista), não via nada (Álvaro Sobrinho andou a distribuir milhões por Luanda porque quebrar o sigilo bancário em Angola dava prisão) e não ouvia nada (bastaria que Carlos Costa tivesse “feito um sinal” e Ricardo Salgado teria saído ordeiramente do BES, sem sequer olhar para trás).

Mas, em simultâneo, o mesmo senhor presidente que durante anos e anos não viu as crateras que se iam abrindo no Grupo Espírito Santo, numa assumida manifestação de olímpica azelhice, já se considerava superiormente dotado para salvar o BES em Agosto, tivessem o Banco de Portugal e o Governo tido a amabilidade de lhe conferir essa hipótese. É aquilo a que podemos chamar a “estratégia PEC IV”: uma espécie de história alternativa despojada de qualquer vestígio de honestidade intelectual, onde se procura ficcionar um alegado futuro cor-de-rosa começando, em primeiro lugar, por ficcionar um passado que nunca existiu.

Talvez valha a pena, por isso, recordar uma notícia que saiu há dois meses no Expresso, sem ter tido a atenção que merecia: um relatório da Comissão Europeia, citando um estudo do Banco de Portugal, que estimava que o custo de uma falência descontrolada do BES poderia atingir os 46 mil milhões de euros, 30% do PIB português (dois terços desse valor seriam perdas do banco, um terço adviria da necessidade de accionar o fundo de garantia dos depósitos). Dizer que o BES não faliu mas que “foi forçado a desaparecer”, como afirmou Salgado insinuando misteriosas teorias da conspiração, é do domínio da mais despudorada desvergonha. Desvergonha essa que foi devidamente posta a nu nas arrasadoras audições de Pedro Queiroz Pereira e de José Maria Ricciardi. Há um provérbio africano – mais adequado do que o chinês, tendo em conta o papel do BESA em tudo isto –, entretanto já citado por Bruno Faria Lopes, que diz assim: “A chuva molha a pele do leopardo, mas não tira as suas manchas.” Salgado esteve dez horas a diluviar desculpas. Mas as manchas, essas, continuam todas lá.

Uma última nota. Andei duas semanas a espingardar contra a hipocrisia da invocação da presunção de inocência em textos de opinião. Desafio os leitores a ler o que foi escrito sobre Ricardo Salgado a essa luz, para que vejam as diferenças de peso e medida. Podem começar por “O criminoso foi obviamente o mordomo”, de Francisco Louçã.

Sugerir correcção
Ler 13 comentários