Clérigos regressam ao figurino original

A Igreja dos Clérigos reabre ao público esta sexta-feira, restaurada e devolvida às cores e ao brilho originais do projecto de Nasoni. Tem novos espaços musealizados, e a Torre vai estar ainda mais no centro do roteiro turístico da cidade do Porto.

Fotogaleria
A intervenção repôs as cores originais e o brilho da talha dourada Regina Coelho
Fotogaleria
Os dois órgãos barrocos vão regressar à actividade Regina Coelho
Fotogaleria
Sala da Irmandade dos Clérigos Regina Coelho
Fotogaleria
Os dois órgãos barrocos foram restaurados Regina Coelho
Fotogaleria
O granito é o material predominante do edifício Regina Coelho
Fotogaleria
O tecto em cúpula está decorado com pintura de fingimento Regina Coelho
Fotogaleria
A planta oval da igreja é algo raro em Portugal Regina Coelho
Fotogaleria
Imagem de Nossa Senhora da Assunção no altar-mor Regina Coelho
Fotogaleria
Órgão barroco recuperado Regina Coelho
Fotogaleria
A talha dourada recuperou o brilho original Regina Coelho
Fotogaleria
Últimos trabalhos de recuperação do interior do edifício Regina Coelho
Fotogaleria
Tecto em cúpula numa planta oval Regina Coelho
Fotogaleria
Os retratos dos membros da Irmandade pontuam os vários percursos Regina Coelho
Fotogaleria
Trabalhos de última hora no órgão Regina Coelho
Fotogaleria
Retábulo na Sala da Irmandade Regina Coelho

O túmulo de Nicolau Nasoni (1691-1773) continua por descobrir – ou talvez não? O retrato que chegou a ser atribuído ao arquitecto italiano afinal é apenas o de um benfeitor da Irmandade. Mas a Igreja dos Clérigos reabre ao público esta sexta-feira após uma aturada intervenção de restauro e modernização de infra-estruturas, que, como previsto, foi concretizada em menos de um ano.

A festa da reabertura – recorde-se que a Torre manteve-se sempre aberta a visitas durante todo o tempo, e continuou a ser um dos monumentos mais procurados no Porto – vai decorrer durante todo o fim-de-semana, com um programa que contempla música, nomeadamente através do regresso à actividade dos dois órgãos barrocos da igreja depois de restaurados, mas também ópera, jazz e até DJs, além de performances visuais e novo circo – tudo com entrada livre até domingo.

A intervenção de restauro, promovida pela Irmandade dos Clérigos, foi dirigida pelo arquitecto João Carlos Santos, que à data do lançamento do projecto, em 2010, integrava a equipa da Direcção-Regional de Cultura do Norte – actualmente, e desde o ano passado, é subdirector da Direcção-Geral do Património Cultural.

“O nosso trabalho teve como objectivo global o restauro, a reposição do figurino original do edifício, e a sua adaptação às exigências actuais, tendo também em vista o turismo”, explicou João Carlos Santos ao PÚBLICO, no início da visita guiada na quarta-feira, quando os Clérigos eram ainda um ruidoso estaleiro de obras.

A primeira alteração visível no novo organigrama deste edifício que é um expoente do estilo barroco e Monumento Nacional desde 1910 é a passagem da entrada da Rua de S. Filipe de Nery para a Rua da Assunção. Aqui é visível a principal inovação no edifício com a instalação de um elevador dentro de uma coluna de cor cinzenta que sobe até ao quarto piso, que inclui também sanitários e uma área técnica. 

“Este núcleo do elevador é uma intervenção quase cirúrgica, que cria uma espécie de coração novo do edifício”, explica o arquitecto junto à nova entrada, que contém um átrio de recepção e uma loja. A partir daqui, o visitante pode escolher três sentidos diferentes para a visita: a Igreja (que se manterá de acesso gratuito), a Torre ou o Museu, sendo este equipamento a principal inovação nos Clérigos.

Para além da imagem exterior deste monumento que, desde a sua conclusão em 1763, é o principal ex-libris da cidade, é o interior da Igreja que melhor espelha a arte de Nasoni. O restauro da talha dourada e do altar em mármore – de autoria do arquitecto Manuel dos Santos Porto, um dos colaboradores de Nasoni no projecto – repôs o brilho original do templo. “Uma das coisas mais impressionantes nesta igreja que tem um formato oval atípico é o tecto em cúpula, com escaiolas ou pinturas de fingimento, a imitar o granito e o mármore”, diz João Carlos Santos, explicando que a distinção entre os materiais verdadeiros e a imitação “só se consegue fazer pela temperatura”.

Numa intervenção que globalmente não resultou em nenhuma surpresa, a não ser a confirmação de que se trata de “uma construção exemplar e fantástica"  "está tudo no sítio”, nota o arquitecto , houve contudo algumas pequenas descobertas. Entre elas está uma pintura sobre o reboco de um altar lateral, que a equipa de João Carlos Santos decidiu deixar visível – “pode ter sido um estudo para a decoração da talha”, admite o arquitecto, que foi também o responsável pelo restauro do Mosteiro de Tibães, em Braga, do projecto de valorização das áreas poente e norte do Palácio da Ajuda, em Lisboa, cujas obras deverão finalmente avançar, e do último projecto apresentado para a reclassificação do Mercado do Bolhão, no Porto.

Túmulo de Nasoni?

Foi também descoberta, na fase final das obras e de forma ocasional – “já quase no fim da esperança”, disse ao PÚBLICO o padre Américo Aguiar –, a entrada para uma cripta do século XVIII, que guarda uma dezena de sepulturas, a maior parte delas ainda intactas. A hipótese de entre elas se encontrarem os restos mortais de Nicolau Nasoni foi de novo levantada, mas essa é uma investigação que o presidente da Irmandade dos Clérigos diz que terá de ficar para depois.

“Vamos contactar várias entidades e estabelecer uma metodologia para avançarmos nesta pesquisa”, diz o padre Américo Aguiar. Refira-se que a localização do túmulo de Nasoni, que se sabe, pelos registos históricos dos Clérigos, que “foi sepultado nesta igreja, sendo assistido pela Irmandade como pobre e se lhe fizeram os três ofícios como também da sepultura”, é um mistério que tem mobilizado a atenção de investigadores ao longo do tempo.

Uma dúvida que entretanto foi resolvida, na sequência do restauro dos retratos e outros bens móveis da Irmandade realizado na escola da Universidade Católica, foi a identificação de uma pintura, que a certa altura alguém admitiu poder representar o arquitecto. “Essa é a história de uma mentira várias vezes repetida…”, graceja o padre Américo Aguiar, explicando que o retrato em causa é apenas de um benfeitor da Irmandade, cujo nome, António da Cunha Barbosa, foi identificado com a limpeza do quadro.

Este e muitos outros retratos decoram as paredes em volta da “fantástica escadaria principal”, nota João Carlos Santos, a partir de onde se faz também a derivação para os diferentes sentidos da visita. Para o acesso à Torre, há entradas a partir de três pisos diferentes, que até agora estavam entaipadas. Em cada uma das salas de acesso foram instalados painéis interpretativos da história da Irmandade, da vida de Nasoni e da sua obra – os comissários sendo os investigadores Manuel Montenegro, Giovanni Tedesco e Francisco Queirós.

“Para além desta informação histórica e patrimonial, estes espaços têm a mais-valia de fazerem a gestão dos fluxos de visitantes, evitando mesmo situações de pânico que às vezes se verificavam na subida da torre”, diz João Carlos Santos. Outra inovação no percurso da torre é a instalação de guardas nas balaustradas e, no cimo, “um leitor de paisagem” com a identificação dos edifícios mais representativos da cidade, informando a distância e a duração do passeio a pé até cada um deles, a partir dos Clérigos.

Museu dos Cristos só na Páscoa

O corpo principal do edifício foi musealizado num percurso por três níveis e diversas salas, que permitirão conhecer também a história da Irmandade através de mobiliário, como a arca de três chaves do cartório, a sala do cofre, retábulos e outros testemunhos das diferentes épocas e utilizações do complexo, como a antiga enfermaria.

No piso 3, vai ser possível ver já a partir de hoje uma exposição de fotografia de Luís Ferreira Alves a documentar a intervenção agora realizada no monumento – e João Carlos Santos projecta também lançar um livro sobre o tema, talvez na Páscoa.

É também para essa data que está prevista a inauguração do Museu dos Cristos, que irá expor a colecção de crucifixos de António Miranda, um coleccionador de Baião a morar em Lisboa. E ainda a extensão do museu ao coro alto da igreja, com uma instalação interpretativa da talha dourada e vitrinas com peças e adereços da Irmandade.

A reabertura da Igreja dos Clérigos é também pretexto para a edição, pela Direcção-Regional de Cultura do Norte, de um desdobrável sobre a obra de Nasoni no Porto e Grande Porto. O arquitecto Manuel Montenegro, autor de uma tese sobre Nasoni ainda à espera de publicação, é um dos autores desta edição especialmente destinada aos turistas e interessados na arquitectura do mestre italiano.

Uma igreja oval atípica

Montenegro, que acompanhou também a visita do PÚBLICO aos Clérigos, chama a atenção para a importância do edifício, em particular pela planta oval da igreja, “que é muito pouco comum”. O arquitecto diz que, em Portugal, existe apenas uma igreja com esse formato, em Maceira-Dão, perto de Viseu. "Em Portugal, este tipo de planta não teve muita adesão”, mas viria a ser replicado no Brasil, certamente em consequência da emigração para o lado de lá do Atlântico de vários mestres-pedreiros que tinham trabalhado nos Clérigos, refere o arquitecto.

A “petrificação dos elementos decorativos (fogaréus, festões, fontes…), que Nasoni  que teve formação de pintor e de autor de arquitecturas efémeras nos seus primeiros anos em Itália – aqui realizou é uma das marcas dos Clérigos", como das outras obras que depois projectou no Porto e no Norte do país, nota Montenegro. 

No caso dos Clérigos, o investigador assinala também a importância que o monumento adquiriu na modernização da estrutura urbana do Porto. “Estamos a falar de um edifício que estava a ser instalado na periferia, mas que cria um novo eixo” para o alargamento das fronteiras antigas da cidade", diz. “Era impensável entender a nova centralidade da Praça da Liberdade e da Avenida dos Aliados sem esta tensão que se cria entre a Igreja dos Clérigos e a de Santo Ildefonso", no outro lado da encosta.

“É um edifício que cria cidade”, conclui e enfatiza Manuel Montenegro.

Sugerir correcção
Comentar