O surreal é a nova China

Uma capacidade nada negligenciável, neste vencedor do Urso de Ouro de Berlim, para deslizar com as “pequenas pessoas” em direcção à escuridão e ao gelo.

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Trailer Carvão Negro, Gelo Fino

Fogo de artifício a explodir durante a manhã, barragem de artilharia perdida, como o neón do clube Daylight Fireworks que faz crepitar a tristeza numa cidade do nordeste da China: a polícia apanhou os culpados, ficou resolvido o caso dos corpos decepados que, primeiro em 1999, depois em 2004, apareceram aos bocados espalhados pelas redondezas; mas parece que é o filme, porque não há autoria visível para aquela apoteose, a não apaziguar-se – sacundindo-se, de frustração, de ansiedade, daquela maneira.

Fica tudo por resolver, é o final de Carvão Negro, Gelo Fino. A revista Variety encostava-o ao fim de Chinatown de Roman Polanski, o metafísico “Forget it Jake, it’s Chinatown”, o que para além de ser bem visto, já que fica o mesmo sabor agónico, é uma forma de interceptar o que está no organismo da terceira longa de Diao Yinan (Uniform, 2003; Night Train, 2007), vencedora do Urso de Ouro de Berlim em 2014: o film noir.

Zhang (Liao Fan, prémio de interpretação no festival) é uma personagem “ocupada” pela fixação e perda dos homens do noir, atraídos pela luz fatal de uma mulher, aqui uma empregada de lavandaria (Gwei Lun-Mei) que parece deixar cadáveres calçados com patins de gelo à sua passagem. A vertigem de Zhang, a sua impotência, não o abandona, já se manifestando quando ele entra por um túnel em 1999, altura dos primeiros cadáveres, e cumprindo-se quando sai dele segundos depois, e a paisagem gelou e já é 2004 e há mais corpos – “passagem” exemplar do funesto mas habitado, inquieto, preciosismo formal de Diao Yinan.

Então, Forget it Zhang, It’s China... Declaração do realizador: “Há tanto a acontecer na China por estes dias, são coisas mais absurdas do que aquelas que se podem encontrar num romance ou num filme. Não é raro um artista encontrar essa espécie de absurdo da vida real emaranhado nas verdades a que ambiciona chegar com o seu trabalho.”

Estas coisas, em Carvão Negro, Gelo Fino, são as que se encontram nos romances de Chandler ou James M. Cain, nos filmes que os adaptaram – ou ainda, já apareceu citado a propósito de uma sequência de tentativa de prisão que corre mal, no surrealismo acrobático dos Coen. Shelly Kraicer, crítico, programador, canadiano residente em Pequim, diz que uma das coisas que está a acontecer no cinema chinês é a mistura da “arte e ensaio” com o filme mainstream de género, híbrido de surrealismo, violência e sátira que busca decididamente uma audiência em crescimento; os cineastas chineses não se contentam com o prestígio exterior (os festivais) se ele não puder ser consumido no interior. Um filme como A Touch of Sin, de Jia Zhang-ke, e o gosto de artes marciais e gore que nele exercitava o cineasta de Plataforma (2000), foi já um exemplo gritante dessa apetência. Em nome do gesto político, para falar da violência de uma sociedade que abdicou do zen pelo sin, Zhang-ke violentava o seu cinema – com um “catálogo” de histórias sobre a China actual, retratos de desespero e raiva, que se submetia ao “espectáculo”.

É isso o que não acontece em Carvão Negro, Gelo Fino, realizado por um cineasta de obra que, comparada com a de Zhang-ke, ainda apenas se anuncia. Tal como nos filmes anteriores — há uma rima entre a lavandaria deste e a alfaitaria de Uniform, entre um casaco de pele estragado e um uniforme de polícia que aproximam as personagens das (suas) zonas negras – o cinema expande-se a partir da tragicomédia humana. É uma forma de a “ler”, não a impõe. É uma capacidade nada negligenciável para deslizar com as “pequenas pessoas” em direcção à escuridão e ao gelo.

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