Professores doutores de Coimbra

É possível, em troca de um estipêndio que se imagina generoso, defuntear o senso comum e enterrar o seu cadáver debaixo de exuberantes pareceres jurídicos de professores doutores de Coimbra.

Em Março de 2009, quando Vital Moreira foi escolhido para encabeçar a lista do PS às eleições europeias, Almeida Santos justificou a excelência da escolha com uma frase que se tornou célebre: “Um professor doutor de Coimbra, meu Deus!” Dir-se-ia que um conhecimento mínimo da História de Portugal aconselharia certa prudência em relação aos “professores doutores de Coimbra, meu Deus”, mas a verdade é que eles continuam a atravessar-se no nosso caminho, desta vez a propósito do caso BES.

Após a audição do governador do Banco de Portugal na comissão de inquérito, e de uma polémica com o professor de Direito Pedro Maia, o Banco de Portugal fez o favor de divulgar na Internet três pareceres de professores de Coimbra relacionados com a questão da retirada de idoneidade a administradores de instituições bancárias. Dois desses pareceres, de Pedro Maia e João Calvão da Silva, foram produzidos em Novembro de 2013 por encomenda de Ricardo Salgado, após ter sido noticiado que o então presidente do BES recebera vários milhões de euros (8,5 milhões, a início, 14 milhões, no final) do empresário José Guilherme. O terceiro parecer é anterior a esses dois, data de Julho de 2013, e foi assinado por José Carlos Vieira de Andrade a propósito de outro caso, que a documentação disponível não especifica (a identificação foi rasurada pelo Banco de Portugal), mas que pode ser facilmente extrapolado para justificar a não retirada da idoneidade a Ricardo Salgado em 2013.

Escreveu Vieira de Andrade: “Para indiciar a falta de idoneidade, a lei não se basta com a mera existência de vestígios (ainda que estes possam ser fortes, traduzidos, até, numa acusação ou numa pronúncia) da prática desses crimes, sendo exigida a condenação do sujeito.” Escreveu Pedro Maia, já sobre Salgado: “A transferência efectuada respeita a uma relação do foro pessoal e nada tem que ver com o desempenho de cargos sociais por parte de Ricardo Salgado”, não se vislumbrando “de que forma a aceitação de uma liberalidade” pudesse ter reflexos numa “gestão sã e prudente do banco”. Escreveu João Calvão de Silva: “Como a liberalidade foi conselho dado a título pessoal, não se vê por que razão censurar a sua aceitação.” Mais: “Os simples conselhos não responsabilizam quem os dá. É o bom princípio geral de uma sociedade que quer ser uma comunidade – comum unidade –, com espírito de entreajuda e solidariedade. De outro modo, ninguém estaria disponível para dar um conselho a quem quer que fosse.”

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Desde a divulgação destes pareceres, ainda não dei por Calvão da Silva ter vindo a público justificar esta sua comovente visão de “entreajuda e solidariedade”, o que é uma pena, dado estarmos no Natal. Mas devo dizer que é preciso ter uma lata do tamanho do Pólo Norte para enviar uma carta de protesto ao Parlamento, como fez Pedro Maia, em nome “da verdade” e em defesa do “bom-nome profissional e académico”, alertando para a descontextualização do seu parecer, já que quando ele foi proferido ainda não eram conhecidos os desastres nas contas do BES. Está correcto, e admite-se o azar. Mas, ainda assim, há obras que não envelhecem – e tanto hoje como há um ano, estes trabalhos de Pedro Maia e Calvão da Silva são admiráveis exemplos de como é possível, em troca de um estipêndio que se imagina generoso, defuntear o senso comum e enterrar o seu cadáver debaixo de exuberantes pareceres jurídicos de professores doutores de Coimbra. Um grande “meu Deus!” para eles – de espanto e de indignação.

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