"Nelson Mandela foi exímio em manipular o seu próprio carisma"

O legado de Mandela continua a ser celebrado um ano depois da sua morte. Agora talvez com outro olhar, propõe a escritora Elleke Boehmer, para quem o primeiro Presidente negro da África do Sul misturou uma visão democrática com um estilo autocrático.

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O heroísmo de Mandela "não se esbaterá com o tempo" ALEXANDER JOE/AFP
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"O desenrolar do tempo reforçará e acentuará o nosso sentido do heroísmo de Nelson Mandela Charles Platiau/Reuters

Foi a partir do Reino Unido, onde viveu a maior parte do tempo e se juntou à luta antiapartheid, que a escritora e professora de Literatura Anglófona na Universidade de Oxford Elleke Boehmer assistiu na televisão à libertação de Nelson Mandela em 1990. Quatro anos depois, voltou ao país que a vira nascer em 1961, para viver esse momento “extraordinário” das primeiras eleições livres na África do Sul que conduziram um homem “extraordinário” ao poder.

Por ocasião do primeiro aniversário da sua morte, que se assinala esta sexta-feira, Elleke Boehmer virá a Lisboa na próxima semana para o lançamento do seu livro Nelson Mandela: A Very Short Introduction (2008), publicado em Portugal com o título A Vida de Nelson Mandela (Tinta da China). A autora de vários livros sobre estudos coloniais e pós-coloniais e de romances como Bloodlines ou Nile Baby será uma das oradoras da sessão de homenagem ao líder histórico que se realiza na próxima terça-feira na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

Um ano após a morte de Nelson Mandela, que se assinala esta sext-feira, que mais pode dizer-se que não tenha sido dito? O que é que, ao longo deste ano, justifica que se continue a reflectir sobre o seu legado?
Um ano depois da sua morte, podemos tomar distância quando reflectimos sobre a sua vida, as suas conquistas, o seu legado e olhar isso como algo que teve um princípio, um meio e um fim. Podemos fazer um juízo sobre as diferentes fases da sua vida. Era impossível fazê-lo quando Mandela ainda estava vivo, porque a sua vida e as suas conquistas não estavam concluídas. Muitas pessoas tinham relutância em falar de forma crítica sobre o seu legado, sobre os seus feitos, quando ele estava doente e já numa idade avançada. Agora que Mandela desapareceu, e que avançamos mais no século XXI sem a presença dele, é possível fazer um juízo com diferentes tonalidades.

Será essa a reflexão que fará na conferência que vai apresentar em Lisboa?
Na conferência, vou reflectir sobre a maneira como Mandela alcançou o inimigo, garantindo-lhe que vinham [ambos] do mesmo conjunto de valores – principalmente o nacionalismo. Parece muito simples dizê-lo agora, mas na altura foi uma ruptura com o passado, como um abrir de olhos, essa consciência que ele tinha de que o africânder tinha a mesma paixão pela terra sul-africana que o ANC [Congresso Nacional Africano]. Paixão no sentido de a defender e de viver nela e não noutro lugar.  

É o passar do tempo que permite um novo olhar sobre a figura de Mandela?
Perante os desenvolvimentos na África do Sul após a sua morte, como, por exemplo, o facto de a liderança do ANC se ter tornado tão distante das pessoas, podemos dizer que havia aspectos na liderança de Mandela nos anos 1990 que eram eles próprios relativamente autocráticos. Ele gostava de liderar estando na frente, de afirmar a sua autoridade, de ser ouvido, e nem sempre consultar, aconselhar-se.

Parte do actual descontentamento dos sul-africanos tem origem no tempo em que ele era líder?
Não digo necessariamente que ele é o responsável. Digo que [o que se passa actualmente] nos remete para esse tempo, sim. Vemos desenvolvimentos hoje que têm raízes nos anos 1990, no tempo em que Nelson Mandela estava no poder. Não o digo de uma forma crítica, mas de uma forma reflexiva, objectiva, no sentido em que somos capazes de recuar um pouco e observar que ele não era como um santo, separado do seu tempo. Ele era parte da História e das suas complexidades.

Uma das qualidades de Mandela mais frequentemente citadas é a de teria um dom para ouvir as pessoas. Quer dizer que há uma diferença entre ouvir e consultar?
Sim, há uma diferença muito marcada. Ele era excelente a ouvir as pessoas. Além disso, Mandela tinha um talento extraordinário para ver um problema do ponto de vista da oposição ou do seu inimigo, bem como do ponto de vista do seu partido. E a forma como ele usou esse dom teve um efeito muito positivo. Mas era diferente quanto a consultar, a aconselhar-se junto dos outros. Importa lembrar que quando se tornou o primeiro Presidente da África do Sul democrática, Mandela já era um senhor de muita idade, que tinha sido educado e treinado numa época em que a definição das hierarquias do poder e da autoridade era mais acentuada. Ele estava habituado às coisas serem como ele decidia. Depois de dar tempo à discussão, ele avançava, anunciava o que ia ser feito. O que significa que se nota uma mistura interessante, no seu estilo de governação, entre uma visão democrática e um estilo autocrático. Essa característica, nas mãos de uma pessoa moderada e justa como ele, resultou numa forma de governação eficaz, mas, quando esse modo de governação vem de alguém menos benigno, podem surgir problemas.

Também por isso vê Mandela como uma figura que encerra um conjunto de contradições?
Sim, outro exemplo é o facto de Mandela ser muito centrado na comunidade, mas também altamente individualista. Nos anos passados na prisão de Robben Island, ele dava primazia à discussão das suas ideias e ao diálogo intenso com os seus camaradas, com os seus colaboradores mais próximos, como Walter Sisulu, mas também necessitava de passar muito tempo sozinho, de dar espaço aos seus pensamentos.

O tempo tenderá a esbater o seu estatuto de herói?
Não diria isso. O desenrolar do tempo reforçará e acentuará o nosso sentido do seu heroísmo.

De que forma?
A História é sempre complicada. Nela existem sempre contradições, desordem, divisões e conflitos. Mandela viveu e moldou a História num tempo em que a distinção entre o certo e o errado era muito mais marcada. Agora que essas distinções tão marcadas desapareceram, o seu papel na História da África do Sul é revelado ainda mais no seu esplendor. Não penso que o seu heroísmo se esbaterá com o tempo.

Ao mesmo tempo que, como disse, Mandela moldou a História, o seu heroísmo foi também moldado pelo tempo em que viveu?
Sim, as circunstâncias da África do Sul fizeram dele um herói. Mas para lhe conferirem esse estatuto, ele encontrou uma forma de interagir com essa História que foi incrivelmente eficaz. E há imensas situações actuais no mundo, extremamente complicadas. Se ao menos tivessem um Mandela [para as resolver]. Penso que somos todos agentes históricos criados pelo nosso tempo, e esse é obviamente também o caso de Nelson Mandela, que foi criado pela História que habitou, ao mesmo tempo que a transformou de uma maneira única e notável.

Mais notável enquanto líder da luta antiapartheid do que como Presidente?
Em ambos os casos. Como líder da luta antiapartheid, é notável pela extraordinária contribuição que dá na forma como pensa essa luta. Quando é Presidente, dá um importante contributo, do ponto de vista simbólico, manipulando aquilo que ele próprio representa, o seu próprio símbolo. É exímio em manipular o seu próprio carisma. Não o faz explorando de forma cínica o seu carisma, mas usa-o para o benefício da nação. Ele foi excelente na maneira como manejou a sua personalidade como instrumento político, tanto na prisão enquanto líder da luta, como mais tarde no cargo de Presidente.

O seu maior feito enquanto Presidente foi a tentativa de uma reconciliação?
Sim, mas também o simbolizar em si mesmo não apenas reconciliação mas como caminhamos lado a lado com o nosso oponente histórico de uma forma que permite a vida comum continuar. Não é apenas a visão de reconciliação do arcebispo Desmond Tutu, no sentido de as pessoas se reconciliarem, num sentido quase cristão. O que Mandela conseguiu foi demonstrar que uma pessoa pode avançar, no pós-apartheid, sem amargura, de uma forma humana, de uma forma que propaga a vida humana comum.

Notícia corrigida às 11h31 Homenagem realiza-se terça-feira na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e não Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova.

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