O paraíso começa num copo de água

Segunda proposta de uma série de espectáculos colaborativos da Mala Voadora a partir da ideia de paraíso, leva para palco a carpinteiragem de um idílio em conjunto com os ingleses Third Angel. A possibilidade de consenso, entre duas pessoas ou entre duas companhias teatrais, está sempre em discussão.

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José Carlos Duarte
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Pode o paraíso estar à distância de um copo de água? Mais ou menos.

Imagine-se o leitor de frente para a pergunta: É legítimo beber a água de outra pessoa? A resposta pode naturalmente ser a) sim, b) não e c) depende das circunstâncias. Mas é certo que variará de pessoa para pessoa. E até mesmo na situação de um acordo em relação à terceira opção, as circunstâncias serão sempre diferentes para cada um. Assim, a primeira pedra a ser lançada na construção de um paraíso que a Mala Voadora e os Third Angel tentam esboçar em Projeto Paraíso é esta de um entendimento sobre uma questão aparentemente simples. Sobre a qual, depois, se possam complexificar outras que a vida em comunidade oferece a cada momento, sempre em busca de consensos. Em palco, duas pessoas. Jorge Andrade e Rachael Walton. Ele não enquanto homem, ela não enquanto mulher. Ele enquanto membro de uma companhia de teatro portuguesa, ela enquanto membro de uma companhia de teatro inglesa. E os dois colocam-se a tal pergunta, no número mínimo gerador de consensos. O paraíso é o consenso. Ou a motivação para chegar lá.

Parte de uma série de espectáculos construídos a partir da noção de paraíso – assim mesmo, ‘p’ minúsculo para escorraçar ligações abusivas à religião –, Projeto Paraíso não pretende continuar ou sequer alimentar-se da experiência anterior da Mala Voadora com a francesa Association Arsène, estreada há um ano no mesmo Teatro Maria Matos (Lisboa) que acolhe desde quinta-feira – e até 13 de Dezembro – a parceria com os Third Angel. De cada vez, o paraíso constrói-se de novo, a partir do entendimento entre os vários intervenientes. Em Paraíso 1, a peça caminhava para a tentativa recorrente de descrever uma paisagem que pudesse reclamar-se como idílica. Agora, há uma borracha passada sobre a paisagem, e o cenário em que os dois actores se apresentam é um quadriculado a preto e branco que parece sugerir um universo pronto a ser construído, mas ainda à espera das primeiras peças. Para Chris Thorpe, da trupe inglesa, “este espectáculo não se dedica a encontrar um lugar idealizado ou a tentar compreender como pode ser ideal um lugar físico e real no mundo”. É antes, acredita, um espaço matemático, próprio do “funcionamento interno do paraíso”.

Duas pessoas em palco, portanto. A negociar, a pormenorizar cada questão na esperança constante da obtenção de uma unanimidade que permita avançar na definição de regras essenciais à convivência social, mas em que o imperativo de se sentirem iguais dinamita o próprio processo. Pergunta: é possível a comunicação se cada uma das partes estiver obrigada a usar alternadamente o mesmo número de palavras, de forma a nenhuma ficar em vantagem sobre a outra? “À medida que estabelecemos mais regras para estar no paraíso, começa a parecer-se cada vez mais com uma prisão”, responde Jorge Andrade. Duas pessoas em palco, recordemos. Duas pessoas com o saber acumulado de várias conferências a que as duas companhias assistiram há um ano, no Warwick Arts Center, onde ouviram académicos apresentarem os seus trabalhos de investigação sobre a ideia de paraíso. “Elaborámos a lista dos departamentos que gostaríamos de ouvir a falar sobre as suas investigações e tivemos alguém da teologia, da sociologia, da matemática, da história de arte e dos estudos de género”, descreve Alexander Kelly, também dos Third Angel. Foi do resultado dessas conversas que partiram para uma primeira discussão sobre a direcção a seguir em busca do paraíso.

“Na minha cabeça nunca esteve um paraíso religioso”, sublinha Jorge Andrade, “mas antes essa ideia de poder alcançar um consenso com o outro”. Duas pessoas em palco, ainda assim. Com a teologia convidada então a sair, mas com a imagem intuída de Adão e Eva a pairar por cima dos dois actores. Só que um Paraíso que não existe por vontade divina. Um paraíso carpinteirado a dois, sofrido em cada decisão, muito provavelmente inalcançável.

O bom falhanço

Duas pessoas em palco. Mas também duas companhias no palco e fora dele. Não é preciso raspar muito a superfície de Projeto Paraíso para se perceber que a negociação e a discussão entre as duas personagens chamadas à cena é um prolongamento da negociação e da discussão entre Mala Voadora e Third Angel para chegarem a esta ideia de espectáculo, que parte de um pressuposto idêntico: a perfeição não existe, tente-se o resultado que menos se distancie desse intento. “Há muitas coisas por baixo da perfeição que valem a pena ser alcançadas”, defende Alex. Chris Thorpe reforça a ideia dizendo que “a aceitação do falhanço é inevitável, e é aí que encontramos bom material”. “Mas estamos a falar de falhanço como algo positivo, como parte de um processo artístico que nos leva a um sítio inesperado. Claro que, por vezes, há a noção terrivelmente sedutora em que se cai de ‘o falhanço é inevitável, por isso não faz mal produzir trabalho de merda’. E é o contrário. O falhanço não pode ser uma desculpa para um mau trabalho. Nunca.”

Chama-se Projeto Paraíso porque, esclarece Jorge Andrade, a ideia do inalcançável está já inscrita na sua génese, como se aquilo que aqui fazem fosse pôr em marcha um processo que jamais pode ser concluído. “É como dizem na ficção científica: sempre que se viaja no tempo há algo de errado e temos de disfarçar artisticamente aquilo que está errado. Vejo a forma como trabalhamos como sendo a de encontrar problemas e tentar resolvê-los.” Ou seja, nesta tentativa de construção, há que testar hipóteses, rasurar as que não resultam e aproveitar as restantes como alicerces para começar novamente o processo. Neste gesto repetitivo há, de certa forma, uma sentença que parece “condenar” qualquer ser vivo que não viva em clausura. Um gesto de esperança, talvez mesmo de fé, que para Chris Thorpe se assemelha a uma bola lançada ao ar. “Há um momento, no auge dessa trajectória, em que a bola está completamente imóvel, e que é um momento imensuravelmente pequeno porque as forças nunca deixam de actuar sobre a bola. Nessa altura, parece que seremos capazes.” Claro que, depois, a bola é desgraçadamente puxada para o solo. Mas a cada lançamento, por mais que a razão diga o contrário, acredita-se sempre que, por algum motivo inexplicável, a bola possa ficar lá em cima, suspensa.
 

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