Coração e cabeça de Fátima Mendonça

Fátima Mendonça tem duas exposições em Lisboa: oportunidade para revisitar uma obra discreta e de grande qualidade, que se constrói aquém das luzes da ribalta mediática.

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Em A Cura – operação ao cérebro, na Galeria 111, desenhos e pinturas representam uma série de cabeças feridas por onde saem males e matérias diversas

Expõe regularmente desde o início da década de 90. Mantém-se fiel à mesma galeria dos seus inícios, a 111, e, embora ela se vá fazendo, adivinhamos que não centra o seu percurso na ambição da internacionalização, como é tão frequente noutros artistas seus contemporâneos. Fátima Mendonça abriu recentemente duas exposições em Lisboa que permitem perceber a totalidade do seu percurso e a coerência do trabalho que vem desenvolvendo. E este é de facto singular no âmbito da arte portuguesa contemporânea.

Em Algés, no Centro de Arte Manuel de Brito, acompanhada por um livro, está uma retrospectiva da sua obra, apenas com obras da colecção da instituição. Por essa razão, é possível compreender o caminhar desta artista desde que completou os estudos na ESBAL até aos dias de hoje. É sobretudo fascinante ver como a obra plástica propriamente dita, que está exposta nas salas grandes do espaço do Palácio Anjos, se completa através de uma produção continuada de desenhos, cartões de boas-festas, postais, presentes de aniversário e até mesmo a ilustração de um livro infantil que a artista não distingue do seu trabalho público. Destino privado e destino galerístico não são, para Fátima Mendonça, condicionantes do tipo de projectos que cria. Bem pelo contrário: há uma continuidade no pensar, no fazer e no resultado final que cria uma homogeneidade óbvia em todas as peças que vemos.

Esta homogeneidade, este sentimento de que tudo está ligado neste trabalho, tem a sua origem na própria raiz temática da actividade da pintora: a criação de narrativas visuais totalmente libertas do cânone clássico da composição pictórica, nas quais uma menina, alter-ego da pintora, se exibe em cenas que radicam nas vivências e memórias da artista. Uma mãe que fazia bolos para fora, um coelhinho azul, uma toureira que se mostra em arenas ou jaulas repletas de sacos de tricô, e, agora, uma rapariga de cabeça aberta falam sempre de uma dor imensa, profunda, que é a própria dor de viver. E multiplicam-se de série para série, de quadro para quadro, tecendo teias em pastel de óleo que aprisionam o olhar e funcionam como catarse dessa mágoa profunda. Fátima Mendonça não nega as associações que podemos estabelecer com o divagar do discurso durante a anamnese psicanalítica, reforçando-as mesmo através da inclusão da escrita em muitos dos seus quadros. “Coelhinhos brancos e gordinhos”, “e muitos medos, como ninguém”, “habilidades em croché, para tapar, esquecer o medo”  são, algumas, entre muitas frases, que dirigem o sentido da leitura.

No mais íntimo do ser
As obras mais antigas da exposição datam de 1990. São pinturas feitas em tonalidades escuras que já anunciavam a temática referida anteriormente. Considerando o arco temporal de quase um quarto de século, é possível estabelecer um caminho que vai dessa escuridão para a claridade, ao mesmo tempo que os formatos tendem a aumentar, até ao ponto de, como hoje sucede, envolverem completamente o espectador na teia de imagens e cores que Fátima Mendonça declina. Nos dias de hoje, o fundo tende a ser branco, pintado ou não, e as imagens, sempre contornadas a preto e evocando a bidimensionalidade característica do desenho infantil, não consideram os limites do suporte. Há sempre, na obra de Fátima Mendonça, uma interrupção dos motivos e das cenas que é imposta pelo rectângulo e apenas por ele, como se o desenho extavasasse para as paredes do atelier, oferecendo-nos a artista apenas uma parcela daquilo que compulsivamente foi fazendo. Na série das Casas-Carrossel, de 2010, este processo é muito evidente, tal como sucedia, para apenas dar outro exemplo, na série Eu tenho medo lá, lá, lá, lá, lá…, de 2001. Hoje, continua a dar-se a ver. Na exposição da galeria 111, intitulada A Cura – operação ao cérebro, desenhos e pinturas representando uma série de cabeças feridas por onde saem males e matérias diversas prolongam essa narrativa primária feita de palavras soltas, frases aparentemente sem nexo, imagens que só à primeira vista repetem aquilo que a obra de Fátima Mendonça sempre quis dizer: o facto de a criação artística radicar sempre no mais íntimo do ser, e de se alimentar da insatisfação permanente perante si e perante o mundo.

E, no entanto, somos nós próprios que somos apanhados nesta armadilha. Há quase um século, Panofsky criou um método de análise da obra de arte que se baseava na descrição dos motivos, para depois, a partir da identificação de temas e de histórias, chegar a uma interpretação global da época em que a obra tinha sido criada. Este método tornou-se depois a base de toda a história e crítica da arte, apesar das acusações que diziam que o seu autor tinha ignorado completamente a questão da qualidade estética. Ora, a obra de Fátima Mendonça parece parar-nos no primeiro nível interpretativo. Fixamo-nos na multiplicidade de elementos, tentamos perceber o que se passa para além das frases que caligrafou na folha de papel e da tela, consideramos o desenho supostamente infantil, e abstraímos completamente de tudo o que fica para além desta leitura primária – para utilizar o termo proposto pelo próprio Panofsky. Nela, faltam todas as soluções pictóricas que a artista criou, inventou, utilizou, e que inserem a sua obra numa contemporaneidade certa, e numa linha da arte dita “feminina” em que se insere também, por exemplo, a norte-americana Kiki Smith. A presença de séries, a inclusão da escrita no desenho, a própria referência ao desenho das crianças (mas nenhuma criança desenharia isto) são características contemporâneas. Há uns anos, uma outra artista portuguesa dizia, a propósito do trabalho de Fátima Mendonça: “Ela é uma grande pintora. Há achados pictóricos que ela resolve muito bem, e que eu não conseguiria reproduzir. Olho para os quadros dela e fico sempre a pensar: como é que ela fez isto?”

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