Admirável mundo revelado

Um solo, mas em que Akram Khan interage com inúmeros seres e coisas, representadas ou apenas pressentidas, que é uma viagem ao Bangladesh

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Ouvem-se os ruídos transbordantes de uma cidade com excesso de população: buzinadelas nervosas de veículos motorizados, campainhas impacientes de bicicletas, palavras gritadas em tom de protesto.

Sobre estes sons, Akram Khan avança hesitante, recua, torce-se, como se procurasse evitar obstáculos ameaçadores, escapar ao tráfego intenso. Cai e volta a levantar-se, sob as luzes que oscilam, vigilantes. Numa outra cena,  martela com retumbância o ferro, como se reproduzisse os ritmos e os sons que alardeiam num estaleiro naval. Uma pequena embarcação aparecerá, noutra secção do espetáculo, para o levar por um rio superabundante, ladeado por uma densa floresta.

Tudo é intenso, em Desh — significa “pátria” —, porque tudo parecer ter-se revelado forte e vivo na terra natal dos seus pais, o Bangladesh, país onde o coreógrafo britânico e outros membros da equipa estiveram a fazer pesquisa para a criação da peça. Tim Yip, artista visual, Jocelyn Pook, compositora, Michael Hulls, desenhador de luzes, e o colectivo Yeast Culture, responsável pela criação das animações, contribuíram de forma decisiva para a construção deste espectáculo singular.

Os elementos plásticos e sonoros têm frequentemente uma presença relevante nas peças de Khan. Desde o início do seu ainda curto, mas continuado e consistente, percurso como coreógrafo — criou a sua primeira obra em 2000 —, tem contado com a colaboração dos artistas plásticos Anish Kapoor e Antony Gormley e dos compositores Nitin Sawhney e Philip Sheppard, entre outros.

Tematicamente, atestamos o seu interesse pela viagem (Zero Degrees, 2005); por trabalhar sobre o caos e a ordem, física ou interior (Kaash, 2002, e iTMOi, 2013); por explorar a sensação de os indivíduos se sentirem perdidos (Bahok, 2008) ou de se reagruparem em unidades coesas e fortes (Dust, 2014); e pelas diferentes experiências culturais e corporais, vertente que se tem materializado em distintivos duetos e colaborações com Sidi Larbi, bailarino belga, em Zero Degrees, Sylvie Guillem, bailarina de dança clássica, em Sacred Monsters (2006), Juliette Binoche, atriz, em in-i (2008), e Israel Galván, bailarino de flamenco, em Torobaka (2014). Mas Khan tem também obras centradas na escrita coreográfica, criadas sem a interferência de um guião ou de outros elementos de teatralidade, como Rush (2000) ou Vertical Road (2010).

Entre as peças de grupo e os duetos, surge Desh, em 2011, o primeiro solo de Khan, no âmbito da dança contemporânea, ressalve-se. É que este bailarino, que actualmente se destaca pela invenção de uma linguagem própria, em contínua expansão, pelos cruzamentos, miscigenações e invenções a que a expõe, é também um exímio intérprete de kathak, um género de dança clássica indiana que começou a aprender em criança, continuando, ainda hoje, a fazer performances e a criar espetáculos neste território.

Este trabalho dançado a solo, mas em que interage com inúmeros seres e coisas, representadas ou apenas pressentidas, é uma viagem ao Bangladesh e uma viagem ao encontro de si próprio, das suas memórias, das histórias contadas pelos seus pais. As reflexões sobre a identidade, a forma como o sujeito se vê a si próprio, perpassam nas obras de Khan, quer ele trabalhe com os seus bailarinos — da Akram Khan Dance Company —, quer se lance para novos encontros.

Mas Desh é também um espectáculo sobre a luta e a resistência. É, a um nível pessoal, uma luta contra o medo de estar sozinho num palco, um receio que, segundo o próprio bailarino, teve de defrontar para se aventurar a solo. Há uma secção em que Khan, recorrendo a movimentos extraídos das artes marciais e adotando uma postura ofensiva, parece representar este confronto. A um segundo nível, o da representação de experiências coletivas, é uma evocação e uma celebração da resistência dos bangladechianos às forças políticas e bélicas opressoras e da sua capacidade de recuperação perante as calamidades naturais — os ciclones, as cheias.

Akram Khan esteve pela primeira vez em Portugal em 2002, com dois programas, dos quais se destacou Kaash, a sua primeira peça longa, para cinco bailarinos, em que convocava as forças da criação, destruição e recuperação atribuídas à divindade hindu Xiva. Regressa, em 2006, com Zero Degrees, um trabalho sobre migrações e fronteiras. Voltará uma terceira vez, em 2008, com Bahok, uma colaboração com o Ballet Nacional da China, em que os bailarinos, de diferentes nacionalidades e falando diferentes línguas, se esforçam por comunicar entre si. Hoje e amanhã, com “Desh, o Palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém começará por ser iluminado pela luz ténue de uma lanterna, mas que rapidamente se abrirá sobre o admirável mundo de Akram Khan.

 

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