Mensagens de ódio no Facebook chegam ao Supremo Tribunal dos EUA

O que se escreve nas redes sociais pode ser diferente do que se diz cara a cara? Um homem condenado por ameaçar a mulher através do Facebook levou o debate até ao topo da Justiça norte-americana.

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O Supremo começou a ouvir os argumentos e a decisão será anunciada no Verão Dado Ruvic/Reuters

Anthony Douglas Elonis, um norte-americano de 31 anos residente no estado da Pensilvânia, passou a noite de quinta para sexta-feira em frente à televisão, na companhia da namorada, Stephanie Madden. O ecrã incendiava-se com as explosões de "Assalto ao Arranha-Céus", o filme (spoiler alert) em que o agente John McLane escapa no último momento à destruição do edifício Nakatomi Plaza, em Los Angeles, depois de frustrar os planos do maléfico Hans Gruber para um roubo milionário.

No conforto da sua casa, na pequena localidade de Freemansburg, Elonis apenas tinha planos para um serão tranquilo, mas fez questão de os divulgar através da sua página no Facebook – a rede social que acabou por deixá-lo no centro de um dos casos mais importantes da Justiça norte-americana das últimas décadas, e que o Supremo Tribunal começou a apreciar nesta segunda-feira.

Há quatro anos, as publicações de Anthony Douglas Elonis no Facebook eram muito diferentes das que partilha hoje, como as referências a filmes protagonizados por Bruce Willis ou os inevitáveis selfies. Em Maio desse ano, a sua vida pessoal ficou virada do avesso, quando a mulher, Tara, saiu de casa e levou consigo os dois filhos do casal.

Furioso com a decisão de Tara, Elonis resolveu usar o Facebook para escrever uma série de mensagens dirigidas à mulher, que dizia terem como objectivo "descarregar frustrações".

"Se eu soubesse o que sei hoje, ter-te-ia sufocado com uma almofada. Teria enfiado o teu corpo no banco de trás. Lançaria o teu corpo a um riacho e faria com que parecesse ser um caso de violação e homicídio."

"Só há uma forma de te amar, mas há mil formas de te matar. Não vou descansar enquanto o teu corpo não estiver desfigurado, ensopado em sangue e a morrer por causa de todos os pequenos cortes."

A uma série de mensagens como estas dirigidas à sua mulher juntaram-se outras num tom semelhante, tendo como alvos colegas de trabalho, uma agente do FBI que o abordou em casa por causa dessas publicações, e crianças dos jardins-de-infância nas proximidades da sua casa ("Já não aguento mais. Vou tornar-me conhecido. Há escolas primárias suficientes num raio de dez milhas para levar a cabo o mais abominável tiroteio numa escola alguma vez imaginado. E não há nada mais infernal do que um homem louco numa turma de um jardim-de-infância. A única questão é: qual?")

Elonis e Tara já não eram amigos no Facebook, mas as mensagens eram públicas e foram lidas por familiares da jovem, que na altura tinha 24 anos de idade. Assustada, Tara conseguiu que um tribunal proibisse Elonis de se aproximar dela ou de comunicar com ela de outras formas. Em resposta, mais uma mensagem publicada no Facebook: "Dobra a tua ordem do tribunal e põe-na no bolso. É suficientemente espessa para travar uma bala?"

Em todas as mensagens, Anthony Douglas Elonis deixava elementos que, segundo ele, impediam um tribunal de considerá-las como ameaça reais – notas como "A arte é esticar os limites. Estou disposto a ir para a cadeia em defesa dos meus direitos constitucionais. E vocês?"

Quem não se mostrou disposto a ver nas mensagens de Elonis um caso de liberdade de expressão, salvaguardado pela Primeira Emenda da Constituição norte-americana, foi o juiz de um tribunal de primeira instância, que o condenou a dois anos e oito meses de prisão efectiva e mais três anos de pena suspensa por lançar "ameaças reais", uma decisão que viria a ser confirmada por um tribunal de recurso.

O ídolo Eminem
Depois de cumprida a sentença, Elonis decidiu pedir ao Supremo Tribunal de Justiça que avaliasse os méritos do seu argumento: o de que só existe uma "ameaça real" se a Justiça conseguir provar que quem ameaça tem a intenção de a concretizar, provocando ferimentos ou a morte da pessoa ameaçada. Ora, argumenta Elonis, o seu objectivo era apenas "descarregar frustrações" através de letras rap, à imagem de artistas como Eminem, que fantasiou sobre espancar e matar a sua própria ex-mulher na canção "Kim".

"A nota que ele publicou várias vezes na sua página, que dizia basicamente 'isto tem apenas como objectivo o entretenimento' ou 'não levem isto a sério', quando contextualizada, indica que ele não tinha a intenção de deixar ninguém num estado de medo", disse à rádio pública norte-americana NPR o advogado John Elwood, que apresentou os argumentos da defesa na segunda-feira perante os juízes do Supremo. Para além do exemplo das letras de música rap, o advogado deu também como exemplo a canção dos The Beatles "Run for your life", escrita por John Lennon: "Preferia ver-te morta, pequena, do que ver-te com outro homem."

O que o Supremo terá de esclarecer é se a doutrina adoptada pela generalidade dos tribunais norte-americanos nos casos de liberdade de expressão deve manter-se, ou se deve ser alterada por causa da nova realidade criada pelo aparecimento das redes sociais na Internet.

Em geral, a Justiça norte-americana considera como "ameaças reais" os casos em que os visados sentem que a sua integridade física foi efectivamente posta em causa, desde que esses visados sejam considerados "pessoas capazes e razoáveis"; o que Anthony Douglas Elonis pretende é que a definição de "ameaça real" dependa da capacidade de um tribunal provar que o autor tinha mesmo a intenção de fazer mal ao visado.

A decisão do Supremo, que deverá ser anunciada no Verão, é importante para a forma como as pessoas comunicam através das redes sociais, como salienta no site da revista Forbes Eric Goldman, professor de Direito da Internet, Propriedade Intelectual e Direito da Publicidade na Universidade de Santa Clara, no estado da Califórnia.

"Se o teste legal for a subjectividade [provar a intenção do autor], as pessoas que partilham conteúdos nas redes sociais podem discutir livremente a violência dirigida a outras pessoas, e depois argumentarem (possivelmente de forma retroactiva) que não tinham a intenção de lançar uma ameaça. Dessa forma, antecipamos que muitos acusados vão dizer que estavam apenas a imitar rappers como Eminem, independentemente da perversidade ou do nível de ameaça que as suas mensagens pareçam transmitir", explica Eric Goldman.

Apesar de acreditar que o Supremo não irá dar razão ao pedido de Anthony Douglas Elonis, o professor da Universidade de Santa Clara admite que as redes sociais vieram colocar novas questões: "Por exemplo, se todos os que lerem [uma publicação no Facebook] conhecerem bem o trabalho de Eminem, podem entender uma letra aparentemente ameaçadora de uma forma diferente daqueles que não conhecem."

A principal questão, escreve no site da revista The Atlantic Garrett Epps, professor de Direito Constitucional na Universidade de Baltimore, é saber em que categoria cabe as mensagens partilhadas no Facebook. Para o bem ou para o mal, a decisão dos juízes do Supremo Tribunal dos EUA pode moldar o futuro de muito do que se escreve online: "Se for fácil de mais provar uma ameaça, o governo pode amordaçar aqueles de que não gosta; se for difícil de mais, todos nós – no trabalho, nas ruas, e nas nossas casas – estamos à mercê de homens como Elonis."

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