O processo do Marquês

Foi por estes dias do início de dezembro, mas no ano de 1776, que apareceu um cartaz na esquina da casa lisboeta do cardeal da Cunha, arcebispo de Évora, ex-inquisidor-mor, ex-presidente da Real Mesa Censória, e um dos homens que mais cargos e benefícios receberam do governo do Marquês de Pombal. Como descrito numa carta da época que se encontra na Biblioteca Pública de Évora, era isto que se via no cartaz:

«Dois ou trez homens, com tal ou insignia, ou Letra que indicavam serem Alfayates; e perguntava hum delles ao outro, ou aos outros: Que fazem aqui? Respondiam: Estamos para virar huma casaca.»

Era o fim do poder pombalino. Nas ruas sussurrava-se “isto está para acabar”; dentro das casas apostava-se sobre quem seriam os primeiros a abandonar o barco. Neste caso, acertaram. Quando o rei Dom José I morreu, a 24 de fevereiro do ano seguinte, o cardeal da Cunha foi mesmo o primeiro a receber o Marquês de Pombal no Palácio Real e a anunciar-lhe de maneira seca: “Vossa Senhoria não tem mais nada a fazer neste lugar.”

Pois é, tudo nos parece muito moderno nesta história de cunhas e de virar casacas num cartaz de 1776. Ficou mais moderno ainda quando alguém decidiu chamar à investigação sobre José Sócrates, presumivelmente por causa da proximidade do seu apartamento à rotunda lisboeta, Operação Marquês. É um nome muito mal escolhido — e só não é pior porque talvez só os historiadores dêem por isso.

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Houve de facto, há 230 anos, um célebre “processo do Marquês”. Aconteceu dois anos depois de Pombal ter perdido o poder na corte e de os seus fiéis inimigos e alguns desleais amigos terem ocupado os cargos correspondentes no Governo da “Viradeira” de Dona Maria I. O ex-ministro do Reino foi acusado de corrupção e enriquecimento às custas do tesouro público, sem esquecer todos os seus abusos de poder e repressões ferozes. Entre 1779 e 1781, o velho Marquês (tinha a idade do século, tendo nascido em 1699) veio defender-se vigorosamente numa série de textos que de pouco lhe valeram. Não só as suas antigas vítimas estavam pouco dispostas a ouvi-lo, como a verdade é que ele havia enriquecido no exercício do poder. Os amigos que lhe restavam de pouco lhe podiam valer: estavam dispersos pelo país, num discreto exílio, trocando entre si cartas como a que citei no início deste texto. As acusações foram dadas por provadas e o Marquês de Pombal foi condenado. Mais humilhante ainda, foi depois perdoado pela rainha, em razão da sua velhice e enfermidades. Em 1782, Pombal morreu com o nome manchado e o orgulho ferido.

Quem for que tenha dado o nome de "Marquês" ao caso de José Sócrates prestou assim um mau serviço ao processo e ao país. Desde logo porque, para o bem e para o mal, Sócrates não é Pombal. E sobretudo porque o processo do Marquês, há 230 anos, foi o epítome do que este não deveria ser: uma amálgama de sentimentos, arrogância de um lado e desejo de vingança do outro, divisão do país em duas metades incomunicáveis que se foram guerreando, sob diversos disfarces, nas gerações seguintes. O país não saiu regenerado, nem melhor. Pombal, nem bem condenado, nem inocentado. Depois dele veio Pina Manique, e depois Napoleão, e a rainha, agora já louca, embarcou para o Brasil dizendo: “Não corram! Vão pensar que estamos a fugir.”

E estávamos. Espero que já não seja o caso.

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