Repetir António e Cleópatra até ver o mundo pelos olhos do outro

Prestes a assumir o lugar de director do Teatro Nacional D. Maria II, Tiago Rodrigues estreia António e Cleópatra, uma reescrita da peça de Shakespeare pensada à medida de Sofia Dias e Vítor Roriz. Um texto sobre o amor, sim, mas sobretudo sobre o olhar alheio a que o amor convida.

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Em palco há apenas os corpos dos coreógrafos e bailarinos Vítor Roriz e Sofia Dias, não enquanto António e Cleópatra, mas mais como dois marionetistas que impelem as duas personagens
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Tiago Rodrigues encontrou aqueles a quem chama, “numa enormidade em jeito de piada”, a Elizabeth Taylor e o Richard Burton à sua escala - pela dimensão de casal, sobretudo por lhes detectar uma vincada identidade artística
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Custou 44 milhões de dólares em 1963, passou pelas mãos de dois realizadores, teve dois elencos distintos e demorou dois anos e meio a ser rodado em Inglaterra, Itália, Egipto e Espanha, quase levando à falência a Twentieth Century Fox.

Quando Joseph L. Mankiewicz, um cineasta assumidamente marcado pelo texto e pela linguagem teatral, inspirando-se em George Bernard Shaw, Plutarco e Shakespeare, estreou o desmedido Cleópatra, essa monumentalidade, que lhe era até então estranha e emprestada a cada cena das mais de três horas de filme (em qualquer uma das versões), apenas era suplantada pelo mastodôntico investimento que fez deste o filme mais caro de sempre durante três décadas, assim como pelo escândalo e frémito em torno do romance para lá das câmaras entre Elizabeth Taylor (Cleópatra) e Richard Burton (Marco António).

Tomando essas mesmas referências – Shaw e Plutarco –, Tiago Rodrigues estreia quinta-feira no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, uma peça que parte de Shakespeare mas reclama para o palco a escala oposta à de Mankiewicz: a da intimidade e da nudez cenográfica. Em palco, para além de um gira-discos que, intermitentemente, debita excertos da banda sonora do filme composta por Alex North, há apenas os corpos dos coreógrafos e bailarinos Vítor Roriz e Sofia Dias, não enquanto António e Cleópatra, mas mais como dois marionetistas que impelem as duas personagens no avanço narrativo. As mãos de Vítor moldam o movimento de Cleópatra, as mãos de Sofia desenham o corpo de Marco António. E amparam-nos, empurram-nos, fazem-nos avançar pelo espaço e pelo tempo desse amor transbordante, fazendo quase esquecer quaisquer outras personagens que possam brevemente atropelar o discurso.

Numa continuidade com a sua recente criação teatral, Tiago Rodrigues é aqui atraído (num texto que há muito queria levar a palco) por “boa parte da tragédia de António e Cleópatra, talvez até histórica mas certamente a ficcional de Shakespeare, assentar no facto de a sua existência privada ser tão tremendamente pública e da sua existência pública ser tão íntima, tão emocional”. Compreendendo o teatro como lugar onde a vida pública pode ser representada com intimidade e a intimidade pode, naturalmente, ser exposta, também este enredo de um Marco António dividido entre o amor a que se quer entregar fisicamente (Cleópatra) e aquele que se vê obrigado a forjar por interesses estratégicos e de aclamação popular (Octávia) sublinha a certeza do autor e encenador de que o palco é também adequado para “pensar a política como uma questão amorosa e vice-versa.”

À boleia de Plutarco (“a partir deles, o amor passou a ser a capacidade de ver o mundo através da sensibilidade de uma alma alheia”, escreveu o grego em Vidas Paralelas), Tiago Rodrigues elege como mote para a sua visão de António e Cleópatra a forma como do amor emana uma visão do mundo pelos olhos do outro. Foi esse rastilho que o encenador levou para o primeiro ensaio, em duas simples páginas de texto, engrossadas à medida que o trabalho conjunto foi ditando a forma como os três se iriam apropriando de uma história conhecida à partida. Essencial era que se desse uma troca de géneros, para que desde logo fosse claro que Sofia não é Cleópatra, Vítor não se reclama António. “O ponto de partida”, diz Rodrigues, “era falarmos daqueles outros, naquele tempo, na esperança de que houvesse aí matéria para uma aproximação, para começarmos a encontrar a nossa relação com eles mas também a nossa relação artística.” E é por isso, para cravar funda essa remissão para terceiros, que António, Cleópatra, António, Cleópatra, António, Cleópatra são repetidos exaustivamente, numa “obsessão constante pelo nome do outro, como um adolescente que escreve o nome da pessoa amada nas margens do manual escolar”, compara o novo director do Teatro Nacional D. Maria II, naquela que diz ser uma das escolhas mais radicais da obra – “essa tremenda lista de uma hora e tal de acções e frases que é esta peça”. Como estas: “António lê o futuro no voo do pássaro. Cleópatra lê o futuro na forma das nuvens.”

O amor apesar de tudo o resto
Aos poucos, a terceira pessoa transforma-se na segunda transforma-se na primeira. E o lugar de espectadores em que Tiago Rodrigues a todos nos quer colocar de início, começando pelos bailarinos feitos actores, vai resvalando para uma implicação crescente de quem assiste. São os outros. E os outros, ainda que não inteiramente, somos nós. Pelo menos enquanto testemunhas, enquanto cúmplices de uma história de amor que busca igualmente um casamento na linguagem. Não somente na transformação da perspectiva, mas também no encontro de palco entre Tiago, Sofia e Vítor. E ainda no “jogo lúdico” que o autor identifica na linguagem dos seus intérpretes e que encontra um tocante refúgio no comboio de transformações fonéticas que nos pode levar da nomeação da “corda” com que Cleópatra puxa para si um Marco António ferido de morte pela própria espada, e essa palavra, graças a uma longa cadeia de pequenas adulterações verbalizadas de forma ofegante por dois amantes em despedida, acabar por designar o último suspiro do imperador romano.

Ainda assim, Tiago Rodrigues ressalva que aquilo que se sente a arder debaixo de cada frase não é um exercício de linguagem, e sim, como se suspeita e seria pouco razoável pretender esconder, um texto sobre o amor. “Mas, como na vida”, assegura, “é do amor que falamos apesar de todos os outros temas. É o amor em confronto com o poder, a política, a tragédia, a inevitabilidade da morte, a arrogância, o trabalho, a rotina. É uma peça com muitas temáticas, mas em que todas são satélites da questão amorosa. Quando falamos de amor, se o amor aparecer isolado de tudo o que nos rodeia estamos a cumprir um mau serviço à questão amorosa, a nós próprios e à Humanidade, porque o amor, estando no centro, só tem validade em contacto com tudo o resto.”

Ao propor-se “fazer ao Shakespeare o que ele fez ao Plutarco – roubar a estrutura, roubar a narrativa, roubar inclusive a linguagem” inventando um novo discurso sobre uma velha história, Tiago Rodrigues quis também sacudir as certezas do teatro que tem construído com o Mundo Perfeito desde 2003. E a forma de o fazer passou por encontrar aqueles a quem chama, “numa enormidade em jeito de piada”, a Elizabeth Taylor e o Richard Burton à sua escala, pela dimensão de casal, mas sobretudo por lhes detectar uma vincada identidade artística que obrigou o encenador a assumir essa mesma ideia de base da peça: escrever procurando fazê-lo a partir do olhar alheio dos seus performers, ao mesmo tempo que também Sofia e Vítor tentariam apropriar-se de um texto em que teriam de descobrir o horizonte do autor. Ao assumir esse processo, tornam-se os três objecto mastigado pela própria peça em marcha. As certezas tremem e o que fica é um teatro ancorado nesse torvelinho emocional que é procurar habitar o outro e, por conseguinte, decifrar o mundo com uma chave nova.

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