A primeira vez de Lisboa foi nos anos 1970

São tantas primeiras vezes, da Coca-cola às sex-shops, passando pelos multiplexes de cinema ou pelas mulheres na política, que toda a década parece uma grande estreia. LX70 – Lisboa, do sonho à realidade é uma história pop da cidade na década que resgatou a liberdade.

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Os retornados começam a chegar na ponte aérea, trazendo roupas bem mais coloridas e um novo vocabulário — bué destas palavras ainda estão a bombar entre nós DR
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Lauro António programava as meias-noites do cinema do maior centro comercial da Europa, o Apolo 70 DR
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Cabelos e barbas, bóinas e bigodes, quem é quem na canção de intervenção? Os autores de LX70 decidiram criar um jogo DR
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A revolução de Abril divide o livro e a história da década DR
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Uma publicidade da época anunciando alcatifas da CUF DR
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Alguma da melhor publicidade produzida na década de 1970 DR
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A Coca-Cola chega a Portugal em 1977 DR
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LX70 retrata a vida quotidiana e as histórias da década DR

Um gigante e um anão contemplam o cadáver de Salazar. Três foliões da noite do 25 de Abril reconhecem-se, 40 anos depois, na capa de um livro. “Os retornados que acabavam de chegar de África tinham trazido toneladas de liamba. Era uma coisa da moda.” Álvaro Cunhal e Mário Soares debatem na televisão e das quase quatro horas de conversa fica a repetição de uma frase: “Olhe que não! Olhe que não!”. Lisboa, anos 1970. Ou LX70 – Lisboa, do sonho à realidade.

É uma década de duas cidades  Lisboa antes e depois, Lisboa a preto e branco e a cores, Lisboa versão história pop pelas mãos da jornalista Joana Stichini Vilela e dos designers gráficos Pedro Fernandes e Nick Mrozowski. E não é uma década qualquer, porque começa com um fim. António Oliveira Salazar, 40 anos e uma dolorosa Guerra Colonial depois, morre a 27 de Julho de 1970 aos 81 anos. Quatro dias de luto e exéquias e a imagem que fica em LX70: a última homenagem, nos Jerónimos, de duas “atracções em cena na capital”, o Gigante de Manjacaze e o anão Toninho de Arcozelo. 

Parece um sonho realizado por David Lynch, mas é a realidade. A mesma que, cinco anos depois, opôs os líderes comunista e socialista na RTP três semanas antes do 25 de Novembro e do fim do PREC.

E algures entre ambas – mas com data marcada, 6 e 7 de Março de 1975 – está a memória com que o músico português Gimba ficou do mítico concerto dos Genesis em Portugal, nos píncaros do processo revolucionário em curso. Era lá que havia tanta liamba que cheirava a erva mal se entrava no Pavilhão dos Desportos de Cascais para ver Peter Gabriel que, pouco depois, abandonaria a banda britânica. <_o3a_p>

Na televisão e no país canta-se Sr. Feliz e sr. Contente, a primeira vez de Herman José, a fazer dupla com Nicolau Breyner. Mas no concerto dos Genesis a música é outra. Cerca de 20 mil pessoas num pavilhão que tinha capacidade para seis mil, tendo sido vendidos 12 mil bilhetes. Uma das colaboradoras de LX70, Margarida Videira da Costa, foi ouvir quem lá esteve com 15,16, 17 anos. Quem não tinha bilhete entrou à mesma, houve tiros para o ar do COPCON (o Comando Operacional do Continente, estrutura de policiamento militar criada após a revolução), mas o espectáculo continuou. Com primeiras vezes, muitas. “Ouviu-se directamente um piano. Eu delirava. Nunca tinha visto uma luz negra. Nunca tinha visto fumo”, conta Gimba, que tinha 15 anos em 1975. “Nunca tinha visto uma guitarra com dois braços no palco”, recorda o jornalista Mário Contumélias, que aos 27 anos escrevia para O Século e estava fascinado com a double neck de Mark Rutherford. “Viviam-se tempos muito conturbados. O Verão Quente estava ali a chegar. O 11 de Março foi dias depois. O Peter Gabriel sublinhava que o concerto tinha o propósito do entretenimento e não um propósito político, mas há uma certa relação entre o clima que se vivia em Portugal e o que se viveu naquele dia”, atesta a testemunha. <_o3a_p>

Depois de LX60  A vida em Lisboa nunca mais foi a mesma (D.Quixote, 2012), Joana Stichini Vilela, de 34 anos, voltou a produzir o que quer que seja “um objecto de prazer”. Chama-lhe um bookazine – uma mistura gráfica e textual de livro e revista – que conta histórias da década que fendeu a História de Portugal, um caminho paralelo à auto-estrada da História e à via rápida do jornalismo. É lançado oficialmente este domingo às 16h30 na loja A Vida Portuguesa, no Intendente, com um “comício imprevisto” de Nuno Artur Silva com os autores do livro. <_o3a_p>

Mistura de recolha nas hemerotecas de materiais das revistas Flama e O Século Ilustrado e de história oral, será LX70 uma espécie de história pop contada por jornalistas? “Talvez sim, no melhor dos sentidos”, diz ao Ípsilon a autora do conceito e dos livros: “Gosto que as muitas coisas por que me interesso não sejam levadas demasiado a sério. O nosso papel enquanto jornalistas – e isto é cultura jornalística – é mostrar às pessoas por que é que aquilo é interessante. A História de Portugal tem histórias maravilhosas mas nunca gostei de História no liceu. Gosto muito de narrativas.”. São organizadores de memória, estruturas e andaimes de tinta para os acontecimentos. 

<_o3a_p>Poética da nostalgia
A expressão “cápsula do tempo” é recorrente nas descrições desta colecção de curtos episódios, histórias e anedotas de dez anos que mudaram tudo e cujo epicentro foi, inevitavelmente num país macrocéfalo, Lisboa. Instantâneos que depois recebem tratamento gráfico - como o jogo, reproduzido nestas páginas, para adivinhar qual o cantor de intervenção retratado apenas pela silhueta da sua barba e do seu cabelo  ou que são alvo de entrevistas (cerca de 60), de pesquisa, de confirmações exaustivas. <_o3a_p>

A aparentemente eterna poética da nostalgia está na capa: um grupo de jovens – num país em que 90% dos portugueses tinham menos de 65 anos – abre os braços, felizes e festivos, para uma década contada em 105 histórias. “A própria foto é uma cápsula do tempo”, sorri Stichini Vilela descrevendo a carripana com soldados, marinheiros e lisboetas das avenidas entre punhos erguidos, V de vitória e muitos sorrisos a bordo. Escolheram-na por estar carregada de pistas e, 40 anos mais tarde, reuniram os retratados por um fotógrafo francês em 1974: Jaime Antão ao centro, de boca e braços abertos, Pedro Mateus sorrindo, Eduardo Lieberman rindo-se com os olhos. Amigos da Avenida Columbano Bordalo Pinheiro, passaram o dia da revolução em casa e à noite foram para a rua. Na Avenida da Liberdade estava “mais gente do que se Portugal tivesse ganhado o Mundial”, diz Stichini, citando Antão. E gritavam “Viva a Liberdade!”, porque “o maior alívio e felicidade [era] que com esta revolução não iam para a guerra”.<_o3a_p>

Tinham então 16 anos. Há um punhado de semanas, um deles cruzou-se com LX70 numa livraria. Acabou por se ver na capa e contactou os autores. Contaram mais histórias, de chouriços e frangos assados nas ruas para celebrar a revolução, e Pedro Mateus disse a Joana Stichini Vilela: “A minha vida está toda ali." As muitas primeiras vezes de Lisboa na década de 1970 foram dele também. E estão coleccionadas no livro  ia, como os políticos e a alta-roda, ao primeiro bar travesti de Lisboa, o Scarllaty Club de Guida Scarllaty, foi ver os Genesis a Cascais, aprendeu patinagem no Jardim Zoológico com Xavier Araújo, “um gentleman elegantíssimo” para Maria Teresa Horta, o “professor preto muito direito” de Os Cus de Judas de António Lobo Antunes. 

<_o3a_p>Sexo q.b.
Houve sexo q.b. nestas primeiras vezes de Lisboa nos anos 70, mas também muito género. A primeira sex-shop abriu em Alfama em 1976 e era do londrino Philip Nevitt, que também criava frangos. A primeira revista pornográfica portuguesa era a Gina, a primeira heroína de BD portuguesa para adultos era Zakarella. Mas os anos 1970 também foram a década da primeira Coca-cola (em 1977), dos primeiros semáforos automáticos (em Campo de Ourique), da primeira carta enviada ao FMI (em 1978), das primeiras mulher-polícia (em 1971), da primeira Miss Portugal, Ana Maria Lucas (em 1970) e da primeira novela – e talvez a mais marcante porque não há amor brasileiro como o primeiro: Gabriela, que põe no corpo de Sónia Braga as palavras de Jorge Amado, chega a atrasar Cunhal para a gravação de um programa na RTP porque terminava um episódio (e também tinha Soares como fã).<_o3a_p>

Mulheres, muitas, mas igualdade ainda pouca. Lei do Divórcio só em 1975, o mesmo ano que começa com a primeira manifestação feminista depois do 25 de Abril, organizada pelo Movimento de Libertação da Mulher: o plano não era queimar soutiens, mas os códigos civil e penal, juntamente com tachos e panelas. No Parque Eduardo VII, cerca de 20 activistas mais os filhos crianças vêem-se envoltas por centenas de homens que lhes arrancam os cartazes e a dignidade. Espancamentos, choro, abusos. “Hoje, tive vergonha de ser homem”, diria o jornalista Adelino Gomes no Rádio Clube Português. Quatro anos mais tarde  e sete anos depois dos processos movidos às Três Marias por Novas Cartas Portuguesas –, Maria de Lurdes Pintassilgo seria a primeira e única primeira-ministra portuguesa. <_o3a_p>

Nos dez anos que embrulham acontecimentos quase inacreditáveis como a dedicatória de Charlie Haden, no primeiro Cascais Jazz em 1971, aos movimentos de libertação das colónias, ou a jam session de Gilberto Gil com o Modern Jazz Quartet em directo na madrugada da Renascença de Maio de 1970, “tudo era político”, reforça Stichini Vilela. Se a década de 1960 foi Lisboa a modernizar-se, a de 70 é o país a politizar-se. <_o3a_p>

“Todas as décadas estão cheias de primeiras vezes”, diz a jornalista. “Nos anos 1960 eram franjas, fenómenos pequenos, eram jovens de uma classe média, pessoas que podiam estudar, que iam ao estrangeiro. Nos anos 1970 a revolução é a todos os níveis da sociedade. A revolução vai ter com as pessoas. No 25 de Abril parecia que qualquer pessoa podia fazer uma primeira vez.”<_o3a_p>

Entre as primeiras reuniões punk, a publicidade que fica (“Foi você que pediu um Porto Ferreira?”), as prisões de banqueiros, a excitação dos novos cinemas  ou a Grândola de Zeca a capella no I Encontro da Canção Portuguesa no Coliseu dos Recreios, a menos de um mês da revolução, Stichini Vilela elege um momento menos conhecido e mais surpreendente nesta sua viagem. O mural do Mercado da Primavera do Movimento Democrático dos Artistas Plástico, em Belém. Numa tarde cálida de Junho de 1974, Júlio Pomar, João Abel Manta, Nuno San-Payo e Menez, entre outros, pintaram cada um o seu quadradinho (todos ficaram destruídos num incêndio em 1981) com uma “pequenina moral: ‘as revoluções não se fazem de um dia para o o outro’”. 

<_o3a_p>Notícia corrigida às 10h14 de 28 de Novembro 

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