A juventude adulta dos Pere Ubu

Cristiano Ronaldo, Britney Spears, Elvis e o punk. O Ípsilon falou de (quase) tudo com David Thomas que, a 4 de Dezembro, regressa a Lisboa ao leme dos Pere Ubu para um concerto na Galeria Zé dos Bois (dia 4). No dia 5, actuam pelas 22h, no GNRation em Braga.

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Alexander Horn

David Thomas, membro fundador e eterno dos Pere Ubu, tem um discurso sobre a música americana, o punk e o rock. Um discurso controverso, por vezes contraditório, mas um discurso.

É um rocker que pensa e está de regresso a Lisboa, 14 anos depois do inesquecível concerto dos Pere Ubu na Aula Magna. Quem assistiu, recordar-se-á da energia da actuação, das alturas a que se elevou o volume e da dança, da dança a que o vocalista e compositor se entregava, desafiando a queda. Quem falhou, pode redimir-se na próxima quinta-feira (dia 4), na Galeria Zé dois Bois, ou na sexta-feira (dia5) no GNRation, em Braga. A primeira grande banda de Cleveland está a chegar, brandindo o novo disco, Carnival of Souls (2014) enquanto, do outro lado, ao telefone, David Thomas apaga o seu falsete para falar ao Ípsilon.

Comece-se pelo título, que reproduz o do filme de culto de Herk Harvey, realizado em 1963. Mera citação ou inspiração? “Dizer que foi uma inspiração será exagero. O que nos interessou foi a ideia de memento-mori que o atravessa, a própria ideia de morte. Diria que houve um diálogo com o filme, que se encontra mais ou menos evidente em certos temas. Mas isto não é uma banda sonora. É um disco de rock”.

David Thomas gosta de traçar distinções, de apontar diferenças. Ao cinema o que é do cinema, à música popular o que é da música popular. Porém, para descrever a música dos Pere Ubu tem insistido, em várias ocasiões, na categoria “cinemática”, em detrimento do termo “industrial”. Em que ficamos? É Carnival of Souls um álbum de música cinemática? “Sim tem esse lado muito vincado”, mas, adverte, “cinemática significa um som que cria perspectiva, que leva a música a outro contexto, às mentes dos ouvintes, criando imagens, alucinações, sonhos”. Concorde-se: não faltam momentos oníricos e surreais, criados pelas aparições dos instrumentos de sopro e dos teclados. Este é um disco de subtilezas, ardis, artifícios. E ao som desta palavra, o músico desabafa. “Sim, é verdade, toda a arte é feita de artifício. Não há como escapar-lhe. Há apenas formas de o moderar. E a dos Pere Ubu continua a ser o colectivo. É o que permite a coesão. Repare na carreira dos Beatles ou dos Velvets. Algum dos seus músicos fez, a solo, canções tão boas como as que fez integrado no seu grupo? Não creio”.

O punk foi um embuste
Passados quase 40 anos, David Thomas não perde a oportunidade de provocar discussão ou polémica, razoavelmente indiferente aos novos “paradigmas” de gosto ou de opinião do jornalismo musical ou aos novos conceitos da Academia. “Sabe, nada mudou nos Pere Ubu, somos e não somos a mesma banda. Vivo em Londres, chegaram novos músicos [destaque-se, por exemplo, o inglês Keith Moliné, também crítico musical], outros saíram, mas a ideia de colectivo permanece. As ideias são as mesmas, criámos uma identidade e vivemos da música que fazemos”.

A ideia de identidade é especialmente acarinhada pelo homem que um dia se chamou Crocus Behemoth. “Os discos dos Pere Ubu, e este não é excepção, pertencem à mesma história que Heartbreak Hotel, do Elvis [Presley], que é a história do rock nos Estados Unidos. Essa é a nossa narrativa. Não é a do punk, nem a da Britney Spears”. A aversão ao punk é bem conhecida e não perdeu pinga de verve. “Foi um embuste criado pelos ingleses para vender roupas, produtos, slogans e propaganda. Todo ele. Se hoje a música rock é mercadoria, mais do que alguma vez foi, devemos isso ao punk. Os Pere Ubu não têm nada a ver com isso. Nós cantamos música que o Elvis cantava. O nosso terreno é o do mainstream."


O mainstream dos Pere Ubu é o da história do rock americano, mas quem ouvir com atenção Carnival of Souls, descobrirá outras histórias, distantes da geografia dos EUA. “Suponho que sim, mas o rock não é bem um conceito ou um género, é uma forma de vida, de cultura, e uma narrativa que evoluiu dos anos 70, 80, 90 até hoje. E, volto a lembrar, é americano. Só podia ter nascido na América. Estou convencido disso. Porquê? Terá a ver com o lugar, com as montanhas, os rios, com a sociedade, não sei. Agora isso não significa que os Pere Ubu não apreciem outros tipos de música. Quando começámos, ouvíamos muitos Can, Faust, Neu!, Soft Machine. Erámos uma banda de rock influenciada por outras bandas e isso continua a ouvir-se em Carnival of Souls".

Portanto, qualquer consideração sobre a decadência ou irrelevância do rock merece de David Thomas um desprezo bem-educado. “Não me interessa a novidade, essa procura incessante pelo novo. É tudo conversa. Daqui a 40 anos, os Pere Ubu ainda vão andar por cá. A Britney e o Justin [Bieber]? Tenho a certeza que não.”

A menção às estrelas juvenis do pop desperta uma “tese” que se logo se transforma em pergunta. Não será o rock, como alguma pop, uma actividade próxima do desporto? É que o envelhecimento dos corpos não perdoa. Ver hoje os Rolling Stones ao vivo é como assistir a um jogo entre velhas glórias do futebol ou a uma partida entre tenistas reformados. Estes palcos pedem agilidade. Ou não?

“Percebo essa analogia. Faz sentido. Mas a questão não é só ter um corpo forte e jovem, é também ter a mente. Há quem tenha o corpo, a juventude, mas não tenha o espírito. Veja o exemplo do Wayne Rooney. Tem a juventude, mas não tem o espírito, ao contrário do Cristiano Ronaldo que tem as duas coisas, apesar de, não me leve mal, ser um idiota. Os Pere Ubu foram sempre uma banda adulta, que visiva a maturidade. Final Solution [uma das melhores canções da banda] já era uma crítica a essa cultura jovem”.

Na opinião de Thomas, é em Chris Cutler ou nos Henry Cow que os Pere Ubu encontram os seus pares preferidos, mas não só: “Sou um grande fã de cinema de série B. Os seus realizadores não tinham programa, não eram conduzidos e impunham-se à máquina. Perseguiam o seu cinema com obstáculos e vitórias. Era um trabalho muito duro, com cedências, mas deixou-nos grandes obras”.

Na Galeria Zé dos Bois não haverá cedências. O novo disco será tocado, bem como canções dos primeiros anos. “Sim, claro, vamos tocar temas antigos. Os discos são objectos de contemplação, os concertos são espectáculo, entretenimento. Vamos tocar com carácter e com toda a força que tivermos”.

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