Entra Godot, não fiques à porta

Na constelação de encontros, e sobretudo desencontros que constituem a vida, não fique a aguardar uma deusa celebrada e muito esquiva chamada alegria

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Pilar Olivares/Reuters

Conta-se que um dia questionaram Darwin se a preguiça era um equívoco da evolução e que este se ajoelhou debaixo da secretária procurando o elo perdido. Eu, como o Luís Fernando Veríssimo, tenho uma simpatia profunda pela preguiça, um animal aparentemente inútil. Para o contemplativo mamífero nenhuma crise é novidade, o mundo está do avesso desde que nasceu. Mais zen? Impossível.


Naqueles dias em tudo parece estar virado ao contrário, ponho-me a pensar sobre o que nos faz mover, o que nos instiga. Como ser feliz de uma forma realista, aceitando o casual, fazendo o realizável? A felicidade pode ser tão simples. Um exemplo? Um iPhone. Pousado sobre a mesa, no Calçadão de Ipanema, ao lado de uma água de coco e de um pastel de camarão, para ouvir baixinho a Maria Gadu — “ne me quittes pas” —  enquanto se olha o mar sem tamanho.  Depois? Fotografar o momento tornando-o numa gaveta fechada, numa antiga cómoda de velhas magias. Pronta a abrir quando o céu perde a cor e o sol se apaga na cidade onde moramos. Quem não tem fragmentos de memória assim? Galhos da existência onde nos podemos pendurar como a preguiça?


Temos na nossa origem uma proeza que deveria constar no perfil de Linkedin, antes da universidade ou escola que frequentou: “vencedor da São Silvestre para o óvulo”. Só nós é que demos certos, como dizem os brasileiros. Você, você e você (visualize um dedo indicador a apontar na sua direcção). Somos vezes demais tentados a pensar que a São Silvestre da vida nunca acaba. Errado. A meta é elástica. A vida não é um jogo de Playstation onde só quem leva ao extremo os seus limites é que passa de nível. Auto-prescrevam-se: se o nível for difícil demais, reduzir a exigência. Pense na preguiça.


Na constelação de encontros, e sobretudo desencontros que constituem a vida, não fique a aguardar uma deusa celebrada e muito esquiva chamada alegria. Não fique à espera de Godot, deixe-o entrar quando ele lhe bater à porta. Mesmo que ele tenha uma barriguinha, celulite, seja míope ou não possua os genes do George Clooney ou da Adriana Lima.

E por falar em Godot: se é do sexo masculino pode interromper a leitura neste ponto. As más-línguas garantem que Deus criou o mundo e descansou, depois concebeu Adão e descansou, em seguida gerou Eva e nunca mais Deus, nem o mundo, nem Adão tiveram tranquilidade. A piada causa-me alguma inflamação cutânea, mas a verdade é que  é um retrato  da clássica insatisfação feminina, a perene espera por um Godot que se atrasa mais do que o comboio regional.


Nunca fomos tão livres como a partir do momento em que abandonamos a ideia romântica da princesa a tentar avistar o alazão branco e respectivo príncipe garboso, tão senhoras do nosso nariz com no instante em que deixamos de precisar do beneplácito da Ordem da Mulherada Submissa de Bom Grado. Em simultâneo, jamais fomos tão exigentes, com os Godots desta vida e sobretudo connosco mesmas. Mulher que é independente, que se sustenta, é mais sexy, desenvolta na cama e muito mais livre para dizer “adeus querido, foi bom mas acabou”. Desde que não se esqueça de reservar tempo para si e para viver a sua independência. Para ler livros, se encontrar com amigas, ver os jogos do Sporting, ser imperfeita, ficar a preguiçar no sofá com culpa zero. Pense na preguiça. Razão tem o Veríssimo quando diz que a preguiça, não o animal, a outra, é a mãe da criatividade.

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