Planos infinitos e filmes para golfinhos nos possíveis futuros do cinema

Cinco realizadores discutiram no Porto o futuro do cinema e a conclusão, a ter havido alguma, talvez se pudesse resumir numa frase de Joaquim Sapinho: “cada mágico tem o seu truque para entrar no futuro”

Imagem de <i>Ballad of Genesis and Lady Jaye</i> (2011), de Marie Losier
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Imagem de Ballad of Genesis and Lady Jaye (2011), de Marie Losier dr
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Gabriel Abrantes Rui Gaudêncio
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Joaquim Sapinho Enric Vives-Rubio

O cinema do futuro vai passar por uma utilização intensiva e criativa de tecnologias cujas potencialidades mal começamos ainda a aflorar? Os cineastas de 2050 pouco se preocuparão com os seus irmãos humanos e estarão a fazer filmes engagés para golfinhos? Ou devemos confiar que, amanhã como ontem, lutarão por um cinema que cumpra a missão e o milagre de criar vida e presença, como Flaherty fazendo viver diante dos nossos olhos um Nanook que, ele próprio o diz no início do filme, está morto? Ou ainda, hipótese mais inquietante, todas estas discussões são ilusórias, uma vez que as imagens já se tornaram autónomas e todos nós estamos ao seu serviço, garantindo a sua circulação?

Estas são apenas algumas das questões que esta terça-feira ecoaram no Teatro Municipal Rivoli, no Porto, numa sessão do Fórum do Futuro que se propunha discutir “o cinema como reinvenção do possível”. Sob a flexível batuta do comentador-interveniente Joaquim Sapinho, ouviram-se dois jovens realizadores portugueses nascidos nos anos 80, Salomé Lamas e Gabriel Abrantes, e dois outros cineastas que estes últimos convidaram: o polaco Marcin Malaszczak, que viveu quase toda a sua vida em Berlim, e a francesa Marie Losier, que trabalhou mais de vinte anos nos Estados Unidos. Após o debate, e na lógica de um festival que quer ser ao mesmo tempo reflexivo e performativo, a sessão da noite foi dedicada à exibição de um filme de cada um dos participantes, incluindo Sapinho, que mostrou em primeira mão materiais do segundo filme que está a preparar sobre a guerra da Bósnia.

Olhando para o currículo dos convidados, o mais óbvio ponto comum parecia ser o de um partilhado interesse pelas zonas de fronteira, e de sobreposição, entre o documentário e a ficção, e também, embora em grau diverso – aqui o caso mais óbvio é o de Abrantes –, entre o cinema e outras artes. Um interesse que, a par de alguma coincidência geracional, fazia prever que a sessão iria valer mais pelo detalhe das experiências pessoais do que pelo confronto de visões antagónicas. Mas o filme (falado em inglês) guardava algumas surpresas, como se começou a perceber logo nas primeiras cenas, destinadas à auto-apresentação dos protagonistas.

“Levo muito tempo a fazer um filme, às vezes sete ou dez anos”, explicou Sapinho, “porque me interessa o tempo, esperar pela luz, a memória…”. E acrescentou nunca ter feito uma curta-metragem.  Gabriel Abrantes, que cresceu nos Estados Unidos e vive hoje entre Portugal e a Suíça, e que vê no cinema uma das dimensões do seu percurso de artista, a par da pintura ou da instalação, pegou no exemplo do autor de Deste Lado da Ressurreição (2011) para confessar que desenvolveu “uma técnica exactamente oposta” à de Sapinho: “trabalho depressa e só faço curtas-metragens”.

Co-realizador, com Daniel Schmidt de A History of Mutual Respect (2010), premiado no festival de Locarno, Abrantes diz que vai com “equipas muito pequenas” para sítios que lhe interessam pela “situação económica ou política”, como o Haiti, o Sri Lanka ou o Brasil. Embora os seus filmes possam ser “estranhamente semelhantes a documentários”, garante que só faz ficção. E ao traçar esta linha de forma tão peremptória, distinguiu-se dos outros jovens cineastas presentes, que de modos diversos elogiaram a liberdade criativa que a ambiguidade entre documentário e ficção lhes oferece.

Já o modo como encaram as possibilidades das novas tecnologias, e em particular o digital, está longe de ser consensual. Autora do multi-premiado Terra de Ninguém (2012) – história de um sem-abrigo que foi comando da guerra colonial e assassino a soldo do terrorismo de Estado na Espanha pós-franquista –, Salomé Lamas diz que não fica “muito doida” com o digital, mas também não acha que a tecnologia mude o essencial. Quando filma, o que faz é “esperar o momento”, e isso, diz, não muda se a câmara for digital.

Marie Losier, realizadora de The Ballad of Genesis and Lady Jaye (2011) – que acompanha o modo como o artista Genesis Breyer P-Orridge e a sua mulher se foram submetendo a sucessivas intervenções cirúrgicas como parte de um processo (o projecto Pandrogyne) para se tornarem um só, indistinguíveis –, tem uma relação diferente com o digital. Assume gostar da sua câmara de 16mm e de saber que tem “três minutos para filmar e que o filme é caro”. A liberdade do digital deixa-a “bloqueada”, diz. “Sinto uma alegria física a filmar que não consigo ter com o vídeo, que me deixa um pouco gelada”.

Já Marcin Malaszczak, cujo recente Sieniawka (2013), estreado no festival de Berlim e premiado em França e no Brasil, filma um hospital psiquiátrico polaco numa desolada terra de ninguém pós-industrial, assume o seu fascínio pelas novas possibilidades técnicas de que o cinema dispõe, quer na filmagem, quer na pós-produção. Não só pela liberdade de poder “fazer coisas muito complexas”, que antes só estavam ao alcance de Hollywod, mas também pelas “novas ideias” que estes materiais e técnicas podem trazer ao cinema. Com o digital “é teoricamente possível fazer um plano infinito, que prosseguiria mesmo após a morte do realizador”, observa, defendendo que “o cinema digital ainda está por explorar aos mais diversos níveis”. Já na discussão em torno da crescente fusão entre documentário e ficção, Malaszczak distingue-se subtilmente de Losier e Lamas pelo seu assumido desejo de “encontrar uma terceira forma, incategorizável”.

Mas a oposição mais óbvia ao longo da sessão, e que, como sublinhou Sapinho, só favoreceu o debate, foi entre o moderador e Gabriel Abrantes. Sapinho discutia a morte do cinema, citava filósofos como Bernard Stiegler ou Wittgenstein, defendia a sala escura, afirmava não estar interessado num cinema de “distracção” e evocava Nanook, o Esquimó (1922), de Robert Flaherty, para sugerir que o cinema que importa é o que cumpre o "mistério" de "trazer vida e presença". Tópicos que Abrantes considerava mais ou menos irrelevantes, contrapondo que o que valia a pena discutir é o papel do cinema “no que as pessoas estão a fazer ao ambiente, aos animais e à sociedade”. Evocando o mito de Narciso para sugerir que o antropocentrismo, “a nossa obsessão connosco mesmos”, não terá bom fim, recomenda que passemos a dar prioridade aos animais, e depois às plantas e aos objectos. E na linha de Satie e da sua peça de piano para cães, já vai sonhando com filmes para golfinhos. “Quero lá saber se os adolescentes estão no Facebook, quero é saber se o mundo vai acabar, se estamos a destruir espécies em massa, e se o cinema está a fazer alguma coisa em relação a isto”, disse.

No final, um espectador lamentou que a discussão quase não tivesse tocado na questão da imagem, lembrou que somos filmados diariamente por câmaras que ninguém controla, e lançou a hipótese de que já só fôssemos “clicadores” passivos que as imagens usam para a sua própria circulação. A questão, concluiu provocatoriamente, seria então não tanto a de saber o que queremos, mas “o que querem as imagens”.

De resto, ao contrário do que possamos pensar, raramente sabemos o que queremos, e ainda bem que é assim, defendeu Sapinho, exemplificando com uma história pessoal: “tive uma namorada que me hipnotizava, e eu tentava fazê-la levitar, e foram os melhores tempos da minha vida”.

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