Perigo de perturbação da investigação terá justificado prisão preventiva de Sócrates

Antigo primeiro-ministro recolheu já de madrugada ao Estabelecimento Prisional de Évora, onde lhe foi atribuído o número 44. Só Sócrates e o empresário e amigo de infância Carlos Santos Silva estão indiciados por corrupção. Motorista João Perna também ficou preso.

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O carro onde seguia José Sócrates à saída do Campus de Justiça de Lisboa, já depois de serem conhecidas as medidas de coacção AFP/PATRICIA DE MELO MOREIRA
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Sócrates ficará preso no Estabelecimento Prisional de Évora, onde lhe foi atribuído o número 44 Daniel Rocha
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O juiz Carlos Alexandre à saída do tribunal REUTERS/Hugo Correia
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Os detidos foram conduzidos à prisão em diversos carros da polícia REUTERS/Rafael Marchante
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João Araújo é o advogado de Sócrates neste processo Enric Vives-Rubio

O risco de perturbação da investigação terá sido o fundamento para a decisão do juiz Carlos Alexandre, que decretou nesta segunda-feira a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro José Sócrates, a mais gravosa medida de coacção existente no ordenamento jurídico português. A prisão preventiva de um ex-primeiro ministro é inédita nos 40 anos da democracia portuguesa, em que são raríssimas as condenações de governantes ou ex-governantes.

O risco de perturbação de inquérito é o motivo mais plausível para a decisão de Carlos Alexandre, segundo fontes policiais que têm acompanhado o caso e advogados penalistas, como Artur Marques, que chegam a essa conclusão por exclusões de partes.

Embora os arguidos tenham sido encaminhados para a cadeia anexa à Judiciária, em Lisboa, o ex-primeiro-ministro ficou detido em Évora, onde existe um estabelecimento prisional destinado a polícias e outras pessoas que exercem ou exerceram funções nas forças e serviços de segurança e a quem mais necessitar de “especial protecção”. Segundo disse à agência Lusa fonte policial, foi atribuído a José Sócrates o número de preso 44 naquele estabelecimento prisional, com capacidade para 45 reclusos e que curiosamente foi alvo de uma requalificação precisamente durante o Governo de Sócrates. 

As leis penais só admitem a prisão preventiva em três casos: quando há perigo de fuga do suspeito, quando há risco de continuação da actividade e quando há perigo de perturbação do inquérito. Até agora, não são conhecidos quaisquer elementos que permitam sustentar o risco de fuga de José Sócrates, tendo o PÚBLICO noticiado há dias que os investigadores do caso acreditavam que o ex-governante regressou a Portugal já sabendo que seria detido à chegada.

Sócrates tinha voo marcado para o final de quinta-feira e até já teria feito o check-in quando decidiu não viajar e fazê-lo apenas no dia seguinte à noite. Segundo o comunicado do Tribunal Central de Instrução Criminal, o seu motorista foi detido às 21h38 minutos, umas horas mais cedo do que o amigo de infância de Sócrates e empresário Carlos Santos Silva e do advogado de uma das empresas deste, Gonçalo Trindade Ferreira.

Apenas este último, detido depois das 2h de sexta-feira, escapou à prisão preventiva, ficando obrigado a apresentar-se duas vezes por semana no Departamento Central de Investigação e Acção Penal, onde está a ser conduzido este inquérito que investiga crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.

O advogado Artur Marques considera impossível que o ex-primeiro-ministro pudesse ser sujeito à mais gravosa medida de coacção por risco de continuação da actividade criminosa, já que o crime mais grave, a corrupção, pressuporia que ainda se mantivesse em funções públicas. Artur Marques sublinha que, apesar de considerar viável apenas o risco de perturbação, tal é difícil de compreender, quando a investigação já tem um ano e está sustentada sobretudo em prova documental. O também advogado de Fátima Felgueiras critica a “arrogância” do comunicado do juiz Carlos Alexandre, que não faz qualquer referência ao enquadramento que serviu de base à prisão preventiva. Realçando o impacto internacional do caso, Artur Marques lamenta: “A imagem que vamos passar é a de que mandamos um ex-primeiro-ministro para a cadeia e não precisamos sequer de explicar porquê.”

O advogado de Sócrates, João Araújo, anunciou à saída do tribunal que deverá recorrer da medida de coacção aplicada ao cliente, mas tal não deverá ter nenhum efeito prático pelo menos durante alguns meses. Isto, porque a defesa tem um mês para preparar esse recurso e o Ministério Público tem mais um mês para contestar esse recurso. Os juízes que analisarão o pedido, neste caso da Relação de Lisboa, deverão decidir em um mês, um prazo que, contudo, é meramente indicativo.

O debate entre Ministério Público e defesa sobre as medidas de coacção prolongou-se por mais de três horas — terminou às 19h46 —, tendo Carlos Alexandre anunciado a decisão já depois das 22h. João Perna, motorista de Sócrates, fica também em prisão preventiva, indiciado por fraude qualificada, branqueamento de capitais e detenção de arma proibida, tal como Santos Silva, indiciado pelos mesmos crimes que o ex-primeiro-ministro: fraude qualificada, corrupção e branqueamento de capitais. Trindade Ferreira, que ficou proibido de contactar com os demais arguidos e de se ausentar do país, aguardará julgamento em liberdade, na condição de se apresentar duas vezes por semana no Departamento Central de Investigação e Acção Penal. Está indiciado por fraude qualificada e branqueamento de capitais.

Em Julho deste ano, foi decretada a excepcional complexidade do processo, o que permite dilatar os prazos para a conclusão da investigação e alongar os limites máximos da prisão preventiva.

Pinto Monteiro explica almoço com Sócrates
Para o antigo procurador-geral da República, Pinto Monteiro, um “político não pode ser beneficiado nem prejudicado” aos olhos da Justiça. O magistrado, que esteve à frente do Ministério Público quando Sócrates era primeiro-ministro, prefere não comentar a decisão de Carlos Alexandre. “Até podia fazê-lo, se soubesse os fundamentos da decisão e os factos que estão em causa no processo, mas não sei. O homem pode ter mil e uma culpas, mas eu não o sei”, disse.

Pinto Monteiro, que admite ter almoçado com Sócrates na última terça-feira, em Lisboa, três dias antes da detenção do ex-primeiro-ministro, garantiu ao PÚBLICO que o encontro serviu só para “conversar sobre livros”. “Que fique claro que eu nem imaginava que isto ia acontecer, nem durante o encontro que tivemos isso foi de forma alguma abordado. Foi a primeira vez que almoçámos a sós”, sublinhou o magistrado, que reconheceu, porém, que a coincidência temporal entre o almoço com Sócrates e a semana em que foi detido é realmente “curiosa” e “desagradável”.

Apesar de não querer pronunciar-se sobre o caso em concreto, Pinto Monteiro considera que “está a haver um aproveitamento político num caso jurídico e uma promiscuidade entre a política e a Justiça”. O antigo procurador-geral da República nega que tenha protegido o ex-primeiro-ministro durante os anos em que esteve em funções. Em entrevista à RTP, garante que o caso Freeport, que envolveu o nome de José Sócrates, é uma "fraude". "Foi um processo inventado." Sobre o caso Face Oculta afirma que as escutas feitas às conversas entre José Sócrates e Armando Vara foram destruídas porque "não havia crime nenhum".

"Nunca na vida eu era capaz de travar um caso", assegura, acrescentando que o actual processo que envolve José Sócrates "é novo, não tem nada a ver com os anteriores". "Nunca me senti pressionado, até porque tenho mau feitio para pressões", acrescenta.

Em 2009, enquanto procurador-geral da República, considerou não existirem indícios contra Sócrates quando o procurador João Marques Vidal e um juiz de instrução criminal de Aveiro lhe apontaram suspeitas de crime de atentado ao Estado de direito por tentar controlar a comunicação social através de um plano que previa a compra da TVI. Também então o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento, ordenou a destruição das escutas, realizadas no âmbito do processo Face Oculta, em que Sócrates tinha sido apanhado em conversa com Armando Vara.  As intercepções revelavam indícios daquele crime, na perspectiva do procurador titular do processo e do juiz de instrução criminal que o presidia.

Outras reacções
Teófilo Santiago, um histórico da Polícia Judiciária e responsável por aquela investigação em Aveiro, diz já não guardar “mágoas” sobre esse episódio. “Isso pertence ao passado. Já lá foi. O que importa é que a Justiça esteve atenta e que funciona. Sempre confiei na Justiça. Os responsáveis por esta investigação de agora são profissionais de muita qualidade e Sócrates é um cidadão normal”, observou.

Para o constitucionalista e comentador televisivo José Fontes, tem de haver “indícios muito fortes” de actividade criminosa para o juiz Carlos Alexandre ter decretado a prisão preventiva de José Sócrates. “Na história recente de Portugal é algo inédito”, comenta, referindo o caso de Sarkozy, preso preventivamente no Verão passado por suspeitas de tráfico de influências e violação do segredo de justiça, como um dos poucos do género a nível europeu. O que se passou em Portugal “demonstra que as instituições estão a funcionar, independentemente de se tratar ou não de políticos que estão em causa”.

Para José Fontes, se o processo não tiver “pernas para andar” – seguindo para julgamento, com eventual condenação dos arguidos –, isso também não significará o descrédito da Justiça: “Todos os dias há pessoas absolvidas em tribunal.” Já o PS fica em maus lençóis, diz, numa altura em que se assistia uma reabilitação política de Sócrates. “O seu legado estava a ressuscitar, como se vê pelas figuras que ascenderam à primeira linha com António Costa, como Ferro Rodrigues”, o novo líder da bancada parlamentar. A partir de agora, “de cada vez que levantarem a voz contra o Governo, vão ouvir falar de Sócrates”. “E o Governo precisa da existência de uma oposição forte”, faz notar o analista político, para quem os socialistas vão ter de arranjar grande capacidade de resiliência.

“É um caso inédito na história da nossa democracia”, refere também Conceição Gomes, do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. Encarando o sucedido como “um sinal de afirmação do poder judicial e de que não há intocáveis”, a especialista sublinha que, com esta decisão, foi elevada a fasquia das expectativas que a sociedade deposita na Justiça. Os agentes do sistema judicial viram a sua legitimidade social reforçada, ao mesmo tempo que aumenta o fosso entre os cidadãos e os políticos, por via da descredibilização destes últimos.

Opinião diferente tem o professor de Direito Penal Costa Andrade: “Do ponto de vista criminal, esta detenção não altera nada. Não é relevante.” Reconhece, contudo, tratar-se de um facto inédito por estar em causa um ex-primeiro-ministro. “A decisão de detenção não significa nada relativamente à culpa do arguido, mas apenas que o juiz de instrução considerou que era a melhor forma de assegurar a eficácia da investigação.” Em casos de especial complexidade, como este, a prisão preventiva pode durar até um ano, mas Costa Andrade refere que José Sócrates não tem de ficar preso até um eventual julgamento: “Antes disso pode ser-lhe decretada uma medida de coacção menos gravosa.” Se o juiz entender que deixou de haver perigo de destruição de provas ou de continuação da actividade criminosa, por exemplo. “A comunicação social criou uma grande bolha em torno das medidas de coacção”, resume o penalista. “Já do ponto de vista político vai ter consequências dramáticas”, reconhece. “Desde logo para o destino pessoal do arguido.”

Num comentário na TVI24, a bastonária dos advogados, Elina Fraga, chamou a atenção para o facto de ainda ser desconhecida a versão que José Sócrates e o seu advogado apresentam dos factos. “O que é perigoso”, assinala, defendendo que o segredo de justiça deixe de existir neste caso, uma vez que foi violado ao longo dos últimos dias.

O penalista Paulo Sá e Cunha, por seu lado, lamentou que o comunicado de Carlos Alexandre lido pela funcionária judicial não tenha “adiantado rigorosamente nada” em relação ao que já se sabia sobre o caso.

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