Jean-Pierre Sarrazac: "A parábola é uma forma delicada de abordar a realidade"

Uma peça, O Fim das Possibilidades, em debate no TNSJ, para “fugir da prisão em que o mundo está fechado”.

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Jean-Pierre Sarrazac João Tuna

Jean-Pierre Sarrazac, dramaturgo e crítico francês, autor de O Futuro do Drama (Campo das Letras, 2002), está no Porto para uma das conferências do Fórum do Futuro organizado pela câmara.

O Fim das Possibilidades, título da peça que estreará em Março de 2015 no Teatro Nacional São João (TNSJ), é o nome do programa de terça-feira, às 10h30. Em diálogo com o autor estará, entre outros, o tradutor e ensaísta João Barrento. Sarrazac é uma figura presente no teatro português: em 2003, escreveu e dirigiu, com Christina Mirjol, Cantiga para Já, homenagem a José Afonso que encerrou Coimbra Capital Nacional da Cultura; em 2011, no Porto, coordenou, com Alexandra Moreira da Silva, uma oficina de escrita no âmbito do programa Odisseia, do TNSJ.

A peça é “uma parábola da crise económica, social, política que atravessamos hoje na Europa.” JB, um Job contemporâneo, tenta enganar o diabo, no próprio jogo deste. Antecipando um pouco da sua intervenção, o autor contou como escreveu “uma peça para lá de todo o realismo, para melhor questionar a realidade”.

O Fim das Possibilidades, mote desta conferência, remete para um futuro sem esperança, sem escolhas, onde a ideia de fim da história se tornou realidade. Há pouco mais de dez anos, porém, o título da peça que estreou em Coimbra, Cantiga para Já (que jogava com as iniciais de José Afonso), propunha algo para o presente imediato, e parecia mais esperançoso. O que mudou de lá para cá?
O mundo está fechado na sua prisão. Cantiga era uma maneira de ver o que tinha sobrado da Revolução dos Cravos, passados esses anos. O subtítulo era Place de la Révolution, um jogo de palavras com a palavra "place" (praça e lugar, em francês), que procurava saber que lugar a revolução tinha ainda hoje.

Quando escrevo O Fim das Possibilidades, não é para dizer que adiro a essa tese do fim da história: é o contrário, para exorcizar essa ideia, para tentar sair deste presente um pouco virado sobre si mesmo, em que estamos fechados, que dá lugar um certo hedonismo, um certo gozo do presente, que, infelizmente, nos corta toda a visão de futuro e toda relação dialéctica com o passado. A peça é uma maneira de cheirar o ar dos tempos… só que o ar dos tempos nem sempre cheira bem.

É uma maneira de sonhar uma utopia que hoje em dia não parece possível de ser sonhada?
Sim. A utopia era a abertura do possível, poder-se-a resumir a essa fórmula, e o fim das possibilidades é a contra-utopia. A minha peça é uma espécie de contra-utopia patronal. A fábula é um acordo entre Deus e Satã. É uma versão muito livre, poderíamos dizer libertária, de O Livro de Job, da Bíblia. Há um pacto entre Deus e Satã. O diabo tem permissão para infligir sofrimento a Job, porém sem o matar.

Na sociedade actual, as pessoas, mesmo aquelas que têm uma profissão, que têm ainda um emprego, estão perto de o perder. Há muitas pessoas que estão des-socializadas, e muitas pessoas que ainda não estão, mas que já estão tão perto de o ser, que, no fundo, é como se já estivessem. É a essas que dou a palavra nesta peça.

O que pensa que aconteceu nos últimos dez anos para as coisas terem piorado tanto?
Chamemos as coisas pelo seu nome. Foi o liberalismo económico, do mais selvagem, e a contaminação, pela esquerda, do espírito de direita.

A peça é uma parábola que lembra histórias populares, em especial os contos em que um homem tenta enganar o diabo. A parábola é uma forma que aprecia muito.
Sim, consagrei uma obra grande à questão da parábola em Brecht, Kafka e Claudel. É uma forma que me é muito cara, porque abordamos as coisas pela metáfora. Não escrevo peças de teses, não escrevo peças sociais… Escrevo peças onde tento falar do tempo que vivemos. E a parábola é uma forma delicada, oblíqua, de abordar a realidade, sem ficar atado à realidade, sem fazer sociologismo teatral…

Encontra semelhança entre as formas do teatro contemporâneo e formas de contar histórias mais antigas?
Sim, é sempre essa dialéctica, entre o presente e o passado, que, do meu ponto de vista, é interessante. Dei à peça o subtítulo Uma Fábula Satânica. Mas é uma fábula completamente desconstruída. É uma peça cómico-séria, como diria Bakhtin. Bakhtin criou uma teoria do grotesco. A minha peça não é um decalque da realidade, é mais uma maneira de reconstruir o real. 

Essa forma do grotesco é mais ajustada ao tempo que vivemos?
Em todo o caso, correspondeu, nesta peça, e em outras que escrevi, talvez não todas, mas, neste caso, correspondeu à minha resposta a uma situação presente. Há uma personagem que está no centro da peça, que se chama JB. JB é Job, que seria hoje em dia o homem comum, a multidão. Chama-se JB também porque é a sua marca de whiskey preferida.

O Diabo quer oprimir JB, fazê-lo sofrer, perder o emprego, para enviá-lo às profundezas da terra, com todos os desfavorecidos da terra. JB então monta o seu próprio suicídio. É uma coisa grotesca, uma espécie de farsa terminal. Gosto muito do espírito farsesco da Idade Média. É uma provocação que bate o Diabo no seu próprio terreno. Deus permitiu que o Diabo fizesse sofrer Job, mas não lhe deu o direito de matá-lo. JB usa o seu suicídio contra o Diabo: “Sim, mataste-me, enforcaste-me!” E passeia-se com uma corda de enforcado ao pescoço e a cabeça de lado. Este tipo de grotesco revela o lado trágico da situação global. Na minha peça tento criar situações limite. Não são situações verosimilhantes. Estamos numa espécie de inverosimilhança deliberada. Numa fábula, precisamente, numa parábola, que ultrapassa o real para melhor o encontrar.

Essa ameaça de suicídio é característica de quem está impotente, tendo apenas a greve de fome ou a auto-mutilação, por exemplo, como arma.
Exactamente.

Essa imagem do sacrifício pessoal  como único modo de protesto está presente em muitas peças dos últimos vinte anos. Isso interessa-lhe, de algum modo?
É um facto trágico, mas por exemplo, o teatro de Sarah Kane está completamente assente nisso… e é um teatro que estimo muito. Escrevo de maneira muito diferente, mas, como sabe, além de autor de teatro, sou ensaísta sobre o teatro contemporâneo, e sou aberto à diversidade da dramaturgia. Aprecio muito o teatro de Sarah Kane e de Edward Bond, por exemplo. Mas é um teatro mais trágico, eu sou mais trágico-cómico…

É um tradição mais solar, dir-se-ia, mais do sul da Europa.
(Rindo.) Absolutamente, é por isso que vou muito a Portugal e as minhas peças são feitas em Portugal, creio.

Dir-se-ia que as suas peças têm algo de portuguesas, nesse sentido.
Há um autor do qual me sinto muito próximo que não é português, mas quase, porque é galego, Ramón de Valle-Inclán. É um autor que admiro profundamente. Divinas Palabras é uma peça que acho extraordinária. É um Goya do teatro.

Foi noticiado, recentemente, que o Partido Socialista Francês poderia mudar de nome…
(Rindo.) É o “Fim das Possibilidades”.

Mas em Espanha há uma nova esquerda…
Sim, o movimento dos indignados…

Em França há algo semelhante?
Não, há partidos à esquerda do PSF mas com posições de esquerda, digamos, tradicionais. O movimento dos indignados inspirou-se num livro escrito por um francês, Stéphane Essel (Indignez-vous!), mas infelizmente não floresceu ainda em frança. Mas não é preciso desesperar, pelo contrário, é preciso esperar.

 

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