Ninguém ficará para ver tantas imagens

A fotografia é um excelente exemplo da apropriação exaustiva do mundo pelo ser humano narcísico da contemporaneidade — e uma das mais eloquentes formas de expressão do consumo imparável.

Em determinado momento de Tristes Trópicos, Lévi-Strauss diz que “o mundo começou sem o homem e terminará sem ele”. Esta frase poderá ser medonha para o ser humano narcísico contemporâneo. Ele é aquele que, na posse de todas as tecnologias existentes, não apenas se julga a razão de ser da criação como equaciona já a sua própria eternidade. Isto, claro, enquanto sobrevivente do mundo que ele próprio vem destruindo. (Curioso como ele não se importa de destruir o seu mundo e ir ocupar outros mundos no recém-estreado filme Interstellar, de Christopher Nolan.) A frase de Lévi-Strauss será medonha na medida em que ameaça esse ultra-narcisismo dos seres que ocupam apressada e vorazmente todo o espaço em volta.

Porém, a clareza e a objectividade daquela frase podem provocar outras reacções. Uma reacção de inactividade, de tipo letárgico, que se traduz na atitude de, perante os factos, achar que não há nada a fazer, que nenhum esforço é merecido, que não vale a pena qualquer intervenção ou compromisso com o mundo. Ou uma reacção de voracidade. Ora, a fotografia é, na actualidade, um excelente exemplo dessa apropriação exaustiva do mundo que é também, ao mesmo tempo, expressão do consumo imparável.

Saltemos o tempo em que a fotografia implicava uma produção complexa, exigia um enorme domínio da tecnologia e era um objecto de raridade, olhada como a actividade que tinha ousado atentar contra a suprema habilidade da pintura. Saltemos também os dilemas de Walter Benjamin sobre a possível perda da aura da obra de arte, dada a sua reprodutibilidade possível e infinita. Hoje, a par de uma minoria de fotógrafos que recorrem à metodologia da “antiga fotografia” e que são uma espécie de artesãos da imagem, basta a qualquer utilizador de telemóvel reclamar-se fotógrafo para ser como tal reconhecido por um número excessivo de pares que o incensam com um simples like nessa função. E dado que as redes sociais impõem a quantificação como critério supremo de classificação, eis que uma imagem vulgar pode ter centenas de milhar de likes e uma fotografia de autor não ter direito a qualquer like.

Dir-se-á que, ainda assim, com certeza haverá uma diferença entre estes fotógrafos de impulso e os fotógrafos profissionais; estes últimos têm, antes da fotografia, um pensamento sobre a fotografia (que por vezes justifica alguma lentidão no processo de produção). Mas estes são os poucos fotógrafos crentes, que ainda vivem a fantasmagoria da imagem, aquela que provoca o sentimento de ausência, de desejo, de fantasia. De resto, concordemos: os resultados são muito semelhantes. Entre os milhões de fotografias feitas por impulso e os milhares de fotografias produzidas por profissionais e expostas em feiras, bienais, websites, livros, há uma semelhança de atitude — e, até, alguma continuidade.

A continuidade vem quer dessa incontinência de clicar, quer porque qualquer fotografia devolve ao observador o facto de ela resultar da interrupção de um momento e do seu consequente aprisionamento dentro de quatro margens. Em cada uma delas pode estar o desejo de ser continuada para lá dessas margens, de poder conter um enquadramento em expansão permanente. Assim, tanto nas feiras de fotografia como no rolar das imagens no iPhone ou no tablet está presente e subentendido um exercício: colar pelas margens todas as fotografias do mundo, criando como que um mapa universal onde todas as subjectividades estivessem contidas.

Trata-se de um paradoxo, é certo, porque nesta compulsão de produzir tantas imagens não está presente outra coisa se não a predação continuada do mundo e o desejo de imortalidade. À medida que crescem exponencialmente os auto-retratos, os famosos selfies, mais sentido faz a afirmação de Joan Fontcuberta — “Eu fotografo. Eu existo!” — e mais esta projecção narcísica se expande por todo o espaço em redor: “Acentuou-se a necessidade de capturar tudo e tudo pode ser fotografado — e, mais ainda, tudo pode ser mostrado… As fotografias transformaram-se em expressões de vitalidade, experiências que são transmitidas, partilhadas e depois desaparecem mental e fisicamente” (Joan Fontcuberta, em Pandora’s Camera). Este autor e fotógrafo não tem uma visão necessariamente pessimista da fotografia digital, até porque ela permitiu que o horror dos prisioneiros de Abu Ghraib fosse testemunhado em todo o mundo, mas não deixa de afirmar que o digital abriu a caixa de Pandora — e ainda só estamos no início... Estas imagens aceleraram um processo de inversão: já não são imagens do mundo, elas fazem o mundo e, como são apenas media, de alguma maneira há muito já extinguiram um certo mundo, o mundo dos fenómenos (chuva, vento, carícias, medo, luta, etc.). Restaram pois as imagens e os seus predadores.

Dar-se-ão conta, estes milhões de predadores de imagens, de que ninguém estará cá para observar as suas subjectividades mas o mundo continuará a existir? Muito destruído, mas ainda vivo. Poder-se-á colocar o mesmo dilema a muitas outras produções do humano — prédios, livros, comboios, esculturas —, mas enquanto para estes se pode imaginar que as suas ruínas se fundirão a longo termo com o que resta do húmus, para as imagens não restará outro destino a não ser o do desperdício e do lixo virtual. 

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