Letrados e reaccionários

Na semana passada, Paulo Varela Gomes informou-me que andava a ler um livro que está quase a fazer um século e tem hoje o aspecto de uma curiosa velharia, proveniente daquele Kulturpessimismus alemão que tinha o método de pensar por catástrofes e construía filosofias da História conformes a essa maneira de pensar. Esse livro chama-se O Declínio do Ocidente e o seu autor é Oswald Spengler. Aquele que agora, escovando a História a contrapêlo (como diria um famoso filósofo contemporâneo de Spengler que, aliás, lhe desferiu um forte ataque), se pôs a ler Spengler definiu-se, numa entrevista concedida por altura da publicação do seu primeiro romance, O Verão de 2012, como comunista utópico e reaccionário. Tal caracterização é muito interessante, e a circunstância da leitura do livro de Spengler desvia-a de uma simples boutade, fá-la emergir como definição de uma categoria: a do reaccionário letrado. Só que este modo de ser reaccionário — e tudo o que Paulo Varela Gomes escreveu deste há bastante tempo o confirma — consiste em entender que nada é mais revolucionário do que o passado. Guy Debord disse algo semelhante: nas épocas sem memória, a única maneira de ser revolucionário é ser reaccionário. E, aí, até Spengler é apto a servir este programa, a desactivar a lógica funesta que preside ao modo actual de escandir a História, o qual consiste em produzir passado — muito passado — no mínimo de tempo possível. A figura com a qual o reaccionário letrado pode estabelecer uma afinidade lógica (sob a forma de um quiasmo) é a do letrado reaccionário. Encontramo-lo perfeitamente representado na figura de José Pacheco Pereira, que na semana passada assinava no PÚBLICO um documento programático do letrado reaccionário. A crónica, Vale a pena ler livros novos?, colocava, sem desvios, a questão de saber se algum ganho pode advir de gastarmos tempo a ler as novidades (que desaguam como uma torrente imparável, em relação à qual não temos meios de selecção e de controlo), um tempo precioso que nos faz falta para lermos os valores seguros do património literário do passado. A questão é muito pertinente. Podemos tentar responder-lhe desta maneira: se queremos compreender a nossa época, temos de correr o risco de sermos intoxicados por ela. É, aliás, nesta concepção do nosso próprio tempo como uma coisa tóxica que o reaccionário letrado (do tipo Paulo Varela Gomes) e o letrado reaccionário (do tipo José Pacheco Pereira) se encontram. Ambos decidiram, em conformidade com uma vocação que pode assumir diversas modalidades (a de leitor, a de escritor, a de estudioso, etc.), não viver no seu próprio tempo. Mas enquanto o primeiro procura a anacronia (um espaço vital que lhe proporciona um outro tempo que não é o agora coincidente com o tempo contemporâneo: por isso é que o reaccionário letrado é um intempestivo), o segundo constrói uma utopia: a utopia da biblioteca. A vida do letrado reaccionário, como é Pacheco Pereira, organiza-se em torno dos livros. Eles são a casa do letrado, onde quer que esteja, e são eles que contêm o mundo. O letrado reaccionário sabe que o tempo em que vive não é central, é apenas um entre muitos outros que ele acha que pode conhecer através dos livros. O seu retiro na biblioteca universal é fiel a uma ordem antiga, que está para o fluxo das novidades como o tempo do sagrado está para o tempo profano. O reaccionário letrado e o letrado reaccionário podem respeitar-se mutuamente, mas não pertencem à mesma confraria. 

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