Isto não é um reality-show

Recibos verdes, ataques de pânico, um contrato agora, outro daqui a seis meses: Não dá trabalho nenhum, o novo espectáculo do Teatro Experimental do Porto, é a dura realidade, muito para lá da metáfora, de ser actor em Portugal em 2014.

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MANUEL ROBERTO

João Miguel Mota, o actor português de 36 anos que faz de actor português de 36 anos em Não dá trabalho nenhum, ou João Miguel Mota, a personagem de 36 anos que o actor português de 36 anos faz em Não dá trabalho nenhum? Por estes dias, é difícil distingui-los – se é que são dois, mas presumamos por agora que sim. Não sendo um reality-show, a nova peça do Teatro Experimental do Porto (TEP), que ontem se estreou no Auditório Municipal de Gaia e por ali fica até ao próximo dia 11, é bem o espectáculo da dura realidade de ser actor em Portugal em 2014.

É assim, sem metáforas (apesar da parede de armários com fundos falsos que barrica os actores no palco e pode querer dizer tanta coisa sobre a profissão de actor como vida de permanente coming out ; e apesar de haver lá ao fundo, em segundo plano, um texto fundador, O Pato Selvagem de Henrik Ibsen, que pode querer dizer tanta coisa sobre a existência humana como experiência de representação permanente ao serviço de uma mentira vital), que Gonçalo Amorim, o director artístico e encenador residente da companhia, vê Não dá trabalho nenhum. “É mesmo um espectáculo sobre ser actor em Portugal em 2014 – não quero ser muito mais complexo do que isto. Um espectáculo muito no osso, sem os rodriguinhos que às vezes tanto nos entusiasmam, e sem essa necessidade que também é vital de acrescentar camadas em cima de camadas, significados em cima de significados”, diz ao Ípsilon.

Portanto: um actor de 36 anos a fazer de actor de 36 anos depois de um ataque de pânico a meio de uma representação de O Pato Selvagem, e a ressacar não só o ataque de pânico mas toda uma vida de recibos verdes e contratos precários (um agora, outro daqui a seis meses – a correr muito bem) no consultório de uma psicóloga. Que, claro, na verdade é uma actriz portuguesa de 26 anos (Inês Pereira), porque isto que se parece tanto com a realidade continua a ser teatro. Por estes dias, como dizíamos, é difícil distingui-los – mas misturá-los até este ponto de indiferenciação em que se apresentam diante do espectador deu, como seria de esperar, imenso trabalho. “Este espectáculo já foi muitas coisas, o que teve a ver também com o volume dos cortes orçamentais a que o TEP foi sujeito. Inicialmente era para ser uma convocatória a vários autores para que falassem sobre a precariedade da nossa classe e, a partir dela, sobre a precariedade do país. Depois transformou-se num espectáculo à volta de um actor. Foi mesmo assim: ‘João, vamos fazer um espectáculo em que falamos de ti’”, explica Gonçalo.

Fizeram. João Miguel Mota atirou-se não exactamente para o divã de uma psicóloga mas para as mãos da companhia, que em certo sentido canibalizou a história exemplar deste actor português de 36 anos para a transformar na carne viva de que se alimenta Não dá trabalho nenhum. “Começámos com sessões do tipo entrevistas de vida, em que eu e a Inês fomos instigados a contar histórias da profissão. Foi mesmo discorrer livremente, como num divã, sobre esta temática da precariedade, sobre esta sensação permanente de não sabermos como isto vai acabar”, conta João Miguel. Entretanto, claro, as metáforas tentaram infiltrar-se (e infiltraram-se) nas entrelinhas deste reality-show: a mentira vital por que vivem e por que morrem as personagens de O Pato Selvagem, o ataque de pânico de Tony Soprano, outro grande frequentador de divãs, no episódio-piloto de Os Sopranos… Gonçalo: “À medida que o João e a Inês transcreviam as suas histórias e nós as reescrevíamos, o espectáculo começou a ganhar estrutura. E se esta peça tivesse como prólogo uma cena de O Pato Selvagem? E se a actriz que faz de Hedwig fosse a psicóloga a que o actor que faz de Gregers recorria? O dispositivo do teatro-consulta tornou-se tão forte que decidimos ficar por aí e fazer com que Não dá trabalho nenhum obedecesse o mais fielmente possível ao setting da psicanálise: dura 45 minutos, ele praticamente não a vê, ela praticamente não fala…”

O silêncio de Inês, no caso, é claramente de consentimento: “O João está a falar sobre mim também, eu sinto-me muito dentro daquele divã.” Mas da primeira audição à noite do dente partido, da viagem a Londres aos cães do namorado, da dívida à Segurança Social às propostas indecentes do telemarketing, estas são de facto as histórias de um actor português de 36 anos chamado João Miguel Mota. Ou não? “Quem está ali no divã é a personagem, mas como a vida da personagem é em boa parte a minha vida eu estou lá também. A minha vida passou a ser um texto que eu tive de decorar.”

Nisso, Não dá trabalho nenhum é também a dedicatória de um encenador e da companhia que ele dirige a um actor particular: “Por várias razões, queria muito fazer um monólogo com o João Miguel Mota. É um dos actores com quem mais trabalhei desde que vim para o TEP, um actor muito raçudo, que não tem medo de trabalhar. Vejo-o muito como um working class hero, um verdadeiro sobrevivente – e a programação mais recente do TEP tem uma obsessão pelos sobreviventes…”

Que são muitos, aos milhares (milhões?), no Portugal de 2014. Também por isso, Não dá trabalho nenhum termina com uma comunidade bem mais extensa de pessoas a sair dos armários que emparedam os dois actores. “Queremos que essa cena final seja uma espécie de revitalização da ideia de foyer: convidámos amigos, familiares, actores, colegas de profissão para virem aqui dizer que no fundo podiam ser eles neste divã, como uma espécie de coro da cidade.” É ela que torna este teatro necessário, conclui Gonçalo: “Às vezes sentimos que estamos a esmagar o espectador com a nossa febre moralista, com a nossa urgência de lhe dizer certas coisas. Mas acreditamos mesmo na necessidade que, depois de todas as mentiras que lhe têm sido e continuam a ser vitais, a cidade tem de ouvir estas palavras.”

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