Brasil à valenciana

Alceu Valença, um dos nomes históricos da criação musical de Pernambuco, lança um disco ao vivo com a Orquestra Ouro Preto, Valencianas. Já nas lojas, deve chegar aos palcos em Janeiro de 2015.

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RUI GAUDÊNCIO

Conhecem Cavalo de pau? Coração bobo? Tropicana? Talismã? Então conhecem uma pequena parte da obra gravada de Alceu Valença, cantor e compositor pernambucano que foi um dos protagonistas do luminoso Grande Encontro. O tal que juntou no Canecão, em 1996, Alceu, Geraldo Azevedo, Elba Ramalho e Zé Ramalho para um concerto acústico antológico e que vendeu, em disco, mais de um milhão de cópias.

 Ora Alceu, que nunca deixou de compor e gravar (aos 68 anos já soma 23 discos de estúdio e dez ao vivo), lança agora Valencianas, registo de um concerto no Palácio das Artes em Belo Horizonte, em Novembro de 2012, com a Orquestra Ouro Preto. O disco chega este mês às lojas, o concerto virá a Portugal em 2015.

Nascido a 1 de Julho de 1946 em São Bento do Una, no estado de Pernambuco, Alceu Paiva Valença cresceu rodeado de música. “São Bento do Una tinha cinco mil habitantes, cinco grupos teatrais e dois cinemas. O meu avô materno tocava bandolim, o irmão dele tocava violino e a irmã do meu avô tocava piano. Do lado paterno, o meu avô tocava violão, viola caipira, bombardino. E eu, numa dessas serestas, peguei num bombo. Mas eu era tão pequeno (devia ter uns quatro anos) que não sabia que tinha de acompanhar. E fazia toc, toc, toc no bombo, mas para mim. O meu avô mandou-me tirar dali, dizendo: ‘Alceu não tem compasso, não tem ritmo.’ E isso me persegue até hoje. Se me lembrar do meu avô, perco o ritmo [risos].”

Mas o avô não foi o único na família a tentar arredá-lo da música, o pai também estava atento a tentações. “Hoje no Brasil se estuda muito. Mas naquele tempo as famílias é que tinham de cuidar dos estudos. Na família do meu pai todos estudaram menos os dois que tocavam violão, que viviam mais na boémia. Então o meu pai temia que se eu me virasse para o lado da música iria virar boémio, não iria estudar.” Por isso tentou, ao máximo, afastá-lo desses caminhos. Até que um dia a mãe, desafiando o poder paterno, levou-o até à cidade e fê-lo parar diante da vitrina de uma loja. “Disse: escolha um instrumento para você. E eu, vendo aqueles violões todos, fiquei com medo de pedir um e ela não me dar. Pedi o pequenininho, um cavaquinho. Mas ela disse: ‘Não, você merece um violão’. E comprou um violão para mim.” Só que o poder paterno voltou a impor-se. E não o deixaram ter aulas de violão, embora houvesse um professor disponível, que ensinava “todos os meninos da rua”.

O pai, que concorrera para procurador da Fazenda do Estado, não gostava de advogados, embora tivesse exercido como tal. Mas preferia ver o filho seguir a carreira da advocacia do que a “perder-se” nos caminhos da música que o perseguiam através do rádio. Foi assim que Alceu, já depois se ter iniciado na literatura e no cinema que lhe iam chegando (Manuel Bandeira, Lins do Rego, Drummond, Rubem Braga, Pessoa, Godard, Truffaut, Antonioni) se tornou bacharel pela Faculdade do Recife. Mas desistiu depressa, ao representar o cobrador de uma dívida pela compra de uma televisão: “Fiquei a favor da outra parte. Achei que o devedor tinha razão, tinha sido impelido por uma propaganda enganosa. Disse: não pague. E vim embora, do caso e da advocacia.” Tentou depois o jornalismo, no Jornal do Brasil e em revistas nacionais como a Manchete. “Aí, eu tinha acesso aos jornais do Sul do país. Vi que havia o Festival Internacional da Canção e resolvi colocar lá uma música. E cantei pela primeira vez no Maracanãzinho, onde cantavam os maiores cantores do mundo.”

Quando volta do Rio, dedica-se aos festivais universitários. Larga o jornalismo devido a uma lei que obrigava quem o exercesse a ter o respectivo curso (e ele, que cursara direito, não queria começar tudo outra vez) e, aos poucos, vai-se entregando em definitivo à música que há muito o atraía. “Na casa de meus pais era quase proibido ouvir rádio. Então eu tinha de ouvir em casa dos amigos. Foi na casa de um vizinho meu chamado Edinho que eu ouvi pela primeira vez o Elvis Presley. Havia música de Portugal [trauteia Lisboa, velha cidade…], tangos, música francesa, americana, espanhola, tudo.” Luiz Gonzaga era considerado, à época, “uma coisa cafona”, por isso não tocava na rádio. Mas Alceu conhecia os seus sons, bem como os que o antecediam, provenientes da colonização portuguesa. E misturava-os, na sua cabeça, com o rock’n’roll. “Havia uma certa similitude. Aí, eu, proibido de um, ouvi e gostei do outro. Se eu cantasse as coisas de Luiz Gonzaga, eram capazes de cuspir na minha cara. Por isso peguei o Elvis. E isso até foi bom. Porque não me pareço com ninguém. Peguei tantas referências e coloquei essas referências dentro de um liquidificador imaginário, que terminou tirando um produto meu. Quando eu fiz o Cool Jazz Festival em Nova Iorque, um jornalista do New York Times disse-me: isso é o rock que não é rock. Não soube definir.” O mestre Luiz Gonzaga, no entanto, deu-lhe depois uma definição extraordinária, ao ouvi-lo misturar pífanos nordestinos com guitarras eléctricas: “Você toca uma banda pifeléctrica”.

Comovente Anunciação

Mas, afinal, o que tem a música de Alceu Valença? Ele resume: “Tenho xote, baião, frevo, maracatu, samba meio bossa, toadas, blues, tudo o que se pode imaginar.” Ora é todo esse imaginário que Alceu revisita no seu novo trabalho, gravado com a Orquestra Ouro Preto, uma formação criada em Maio de 2000 e constituída na sua maioria por músicos jovens. Com uma particularidade: repete-se, aqui, algo que já lhe sucedera no Rock In Rio de 1985, quando toda a assistência cantou Anunciação e ele se comoveu. A época era outra, estava-se nas vésperas da eleição de Tancredo Neves para o Planalto e a ditadura estava no fim. Mas agora, a repetição desse “coral” improvisado no final da canção ainda tem ecos de profecia.

O disco (o concerto, para sermos exactos) começa com um longo tema orquestral, Abertura valenciana, 13 minutos onde os sons de Alceu surgem entrelaçados numa estrutura de suite, seguindo-se temas de várias épocas recriados para os dias de hoje: Sino de ouro (1985), Ladeiras (1994), Cavalo de pau (1982), Coração bobo (1980), Talismã (1972), Estação da luz (1985), Porto da saudade (1981). Até que chega a Acende a luz, instrumental. “Eu fiz essa na boca, para orquestra, e o maestro adorou. A história é a seguinte: Em Pernambuco há 1012 eventos em todo o carnaval e eu fui convidado pela prefeitura para cantar num bairro pobre chamado Chão de Estrelas [título de uma célebre canção de Orestes Barbosa]. Ao chegar lá, a luz faltou. E eu fiquei triste porque não pude cantar para aquele povo. Mas fiz essa música, Acende a luz. E no ano seguinte voltei lá e cantei.”

Depois seguem-se Junho e Sete desejos (ambas de 1991), Le Belle de Jour e Girassol, ligadas (de 1991 e 1997), Tropicana (1982) e, por fim, Anunciação (1983), com um final épico. “Esse projecto foi pensado pelo Paulo Rogério Lagos, de Minas Gerais, que tem uma relação com a Orquestra Ouro Preto. Ele dizia: ‘Vamos fazer um trabalho com a tua música’. E eu ‘tudo bem’, mas sem conhecer a orquestra. Até que ele me levou a Olinda o Mateus Freire [mais tarde o autor da abertura Suíte valenciana], paraíbano, que faria os arranjos; e o maestro Rodrigo Toffolo. Aí começámos a falar do projecto, escolhemos 60 músicas, depois passámos para 40 e foi diminuindo até ao número de músicas que ficou.” E foi tudo gravado “de uma vez só”, num concerto em Belo Horizonte. 

Uma aventura que sintetiza uma carreira. Ou que abre um caminho esplendoroso para conhecê-la.

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