O Reino da Estupidez

A Estupidez parece hoje regressar, numa altura em que se encara a Cultura, a Ciência e o Ensino em nome da sua rentabilidade, sob o signo de outras deusas, a Economia e as Finanças.

1. No final do século XVIII correu um poema anónimo intitulado O Reino da Estupidez. A reforma da Universidade do Marquês de Pombal dera grande impulso às ciências exactas e naturais, criando as novas faculdades de Matemática e de Filosofia (Natural), incluindo também nesse impulso as artes e as ciências médicas e dando menos importância às faculdades de Teologia, Cânones e Leis, também reformadas, escolas estas que se encontravam, porém, no topo da hierarquia universitária.

Afirmava-se, assim, uma acção de secularização da ciência. Criticando uma alegada reacção que se dera depois da morte de D. José, o poema afirmava que havia regressado a Coimbra a Estupidez, a qual se reinstalara no trono de Minerva. A Reforma Pombalina era, pois, tida como exemplo e, daí, o receio de que se queria destruí-la.

Claro que este acto de dar à ciência um outro sentido e de lutar contra a velha ordem se integra num vasto movimento comum aos países da Europa, a que se chamou em Portugal “Iluminismo”, de que a obra de Kant O Conflito das Faculdades é um exemplo singular, e também se torna evidente que esse regresso da Estupidez não será assim tão linear no tempo de D. Maria I, a que se chamou expressivamente “Viradeira”. Foi nessa época que surgiu a Academia das Ciências, que iria dar um grande significado ao saber científico global, que envolvia as ditas "ciências exactas e naturais", mas também as humanidades e as ciências sociais em construção. De resto, seriam químicos, botânicos, médicos… — ao lado de alguns juristas e de outros que aprenderam fora da universidade — a darem o seu contributo para as ideias sobre o saber, surgindo novos projectos de ensino, com as suas salutares contradições e englobando propostas para todas as ciências e artes, incluindo a criação de faculdades de Letras.

2. Vem isto a propósito da Estupidez que parece hoje regressar, numa altura em que se encara a Cultura, a Ciência e o Ensino em nome da sua rentabilidade, sob o signo de outras deusas, a Economia e as Finanças. Já nem falamos de graves erros que se cometem com uma avaliação formatada e “eliminatória” de centros e de cientistas candidatos a bolsas e a lugares de pesquisa. Basta por agora falar de situações simples, mas que revelam o sentido que se quer dar a este país, enquadrado num sistema que se tem vindo a instalar em todo o mundo.

Vale o que vale, mas olhe-se para o título de uma foto do PÚBLICO (13/09/2014), em que surgem o nosso primeiro-ministro e o ministro da Educação a inaugurar o ano escolar. Sorridentes e indiferentes às críticas que então choviam e que hoje se mantêm, o primeiro terá aconselhado os alunos, de acordo com a referida legenda, a “enveredarem pelas ciências”. E no texto da notícia especifica-se: “No discurso de abertura do ano lectivo, o primeiro-ministro aproveitou para deixar o apelo aos jovens para enveredarem pelas áreas das ciências e da matemática por serem aquelas onde há menos recursos qualificados no país.E, por certo transcrevendo com rigor as palavras deste paladino do saber político, acolitado pelo matemático Crato, terá dito em Sernancelhe e em Viseu: “Se queremos dar mais futuro ao nosso país, precisamos de concentrar mais esforços nestas áreas tecnológicas, de forma a sermos mais competitivos.” Evidentemente que não faltaria o demagógico discurso em prol da liberdade de escolha dos alunos, mas insistia o nosso primeiro que os “alunos precisam de estar atentos às oportunidades”.

O tom pragmatista deste discurso é revelador da falta de sentido pedagógico e, de um modo geral, da incultura que vai grassando. Não me pauto por uma lógica idealista na orientação que deve presidir à escolha da formação e da profissão, mas considero que este tipo de discurso, se se lamenta que exista nas famílias e seja responsável pela falta de rumo da nossa juventude que, em vez de procurar sentir a sua vocação, se pauta antes pelo objectivo de encontrar uma “profissão de sucesso”, o que raramente sucede em qualquer área, não pode ser adoptado pelos nossos governantes e, como também sucede, por alguns dos nossos professores. Se o “eduquês” matou por vezes o nobre sentido da verdadeira Educação, conforme pretendia Nuno Crato, antes de ser ministro, dando curso a este neologismo, agora o “economês” destrói os valores das pessoas e das instituições, incluindo as universidades, que nasceram à sombra de nobres ideais da comunidade do saber (de todos os saberes), não do saber que se aceita e nos domina, e é visto como mero meio de produção, mas do saber que se cria, se interroga e visa como primeira finalidade o homem e a sociedade. Por isso as políticas no domínio da Saúde e da Assistência, da Educação, da Cultura, da Ciência, da Justiça, da Economia e das Finanças,… parecem por vezes próprias de um verdadeiro “Reino da Estupidez”.

3. Ainda há pouco tempo Jorge Miranda vinha a terreiro provar a “inépcia legislativa” da Lei n.º 11/2014, para a qual Bagão Félix chamou a atenção e que fez com que Octávio Teixeira abandonasse de imediato a sua crónica semanal na RDP. Espantosamente, de acordo com essa lei, que constituiu uma “afronta” para os aposentados, estes eram impedidos de trabalhar para qualquer instituição pública mesmo a título gratuito, impossibilitando que dessem o contributo do seu conhecimento e da sua experiência.

Devo dizer que desde que me aposentei, há sete anos, fiz parte de 27 júris de doutoramento, de agregação e de candidatura para professor catedrático, nuns casos porque senti ser meu dever manter a orientação dos doutorandos, noutros casos porque as universidades pediram a minha presença por razões científicas, mas noutros ainda pelo facto de não haver na área suficientes professores catedráticos em exercício de funções, tendo em conta as dificuldades impostas pelo Governo à progressão na carreira. Em nenhum caso cobrei, nem poderia cobrar, um cêntimo, mas noutros nem recebi sequer o dinheiro da despesas de deslocação. Num tempo em que se começa a questionar a legalidade ou a legitimidade de deputados em dedicação exclusiva por terem porventura recebido “despesas de representação”, forma própria de por vezes se justificar o pagamento de somas avultadas de trabalho ou de influência política, não deixa de ser aberrante esta situação, sobretudo quando instituições públicas começam a não saber como pagar despesas, devido à interpretação das leis, à falta de autonomia real e à burocracia que se levanta e limita as suas capacidades.

4. Termino com dois exemplos recentes.

Em Junho, um município dos arredores de Lisboa solicitou-me que fizesse uma conferência, em 4 de Outubro (dia da proclamação local da República, em 1910, na véspera da proclamação oficial em Lisboa), sobre António José de Almeida, muito ligado ali à difusão do republicanismo. Pois bem, em Setembro, essa mesma câmara telefonou-me a explicar que não poderia pagar-me a deslocação em carro próprio. Tendo em conta o compromisso que já havia assumido e acostumado, como muitos profissionais, a “pagar para trabalhar”, aceitei responsabilizar-me por essa despesa. Novo telefonema, poucas horas depois, dava-me conta de outra situação, esta inédita: os serviços financeiros consideravam que não me poderiam também pagar a estadia num hotel! Perante isso recusei-me, obviamente, a estar presente, perdendo-se pelo menos que recordasse a instauração da República, que este Governo quis à força esquecer, matando o feriado comemorativo e a memória do regime que criou o hino e a bandeira, símbolos da Pátria, de acordo com a actual Constituição, a qual também pouco se respeita.

O outro caso:

A convite de uma universidade pública pediram-me para fazer parte de mais um júri de doutoramento. Tendo em conta a consideração científica que tenho pela instituição e pelo orientador, aceitei, mas alertei para a possibilidade de a referida lei não ter sido corrigida. Telefonaram-me a dizer que já não havia nenhum óbice legal à minha participação, gratuita (claro!), mas a universidade não poderia pagar as minhas despesas de deslocação, pelo facto de ser aposentado!

Digam-me se a Estupidez não assentou arraiais neste “Reino”?! Tal como o poema dizia na sua forma rebuscada de época: “A fria Estupidez acesa em ira,/ Tanto jamais se viu, ao Reino escuro/ Aonde mora a macilenta Inveja/ Com a furiosa e vingadora Raiva,/ Quanto lhe sofre a natural inércia,/ ligeiramente marcha”.

Professor catedrático aposentado da Faculdade e Letras da Universidade de Coimbra, historiador
 

Correcção:

Este artigo, na versão inicialmente publicada, iniciava-se do seguinte modo:

“No final do século XIX correu um poema anónimo intitulado O Reino da Estupidez.”

Trata-se de um erro evidente, facilmente detectável, tendo em conta as referências seguintes à Reforma Pombalina da Universidade (1772) e ao reinado de D. Maria I, que se iniciou depois do reinado de D. José I, em 1777 . Foi assim corrigido para:  

“No final do século XVIII correu um poema anónimo intitulado O Reino da Estupidez.”

Na verdade, o poema, que suscita algumas dúvidas, deve datar da década de 80 do século XVIII, sendo normalmente atribuído ao estudante de Medicina, natural do Brasil, Francisco de Mello Franco. L.R.T.

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