Mitsuko Uchida, entre o rigor e a liberdade

Mitsuko Uchida correspondeu à prova de fogo das Variações Diabelli, de Beethoven, com uma interpretação veemente, que foi ganhando progressivamente flexibilidade, e um admirável sentido do todo.

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Mitsuko Uchida DR

Ao longo das últimas temporadas, a programação da Gulbenkian deixou de contemplar séries como o Ciclo de Canto, diminuiu o número de recitais de música de câmara e reduziu ainda mais os concertos dedicados à música antiga e ao repertório contemporâneo.

Em contrapartida, reforçou-se o Ciclo de Piano, que sempre foi forte e de apelo imediato para o público, apostando no sucesso garantido das salas cheias, muitas vezes esgotadas. Nesta temporada há 15 recitais de piano por 11 pianistas, contemplando alguns dos melhores intérpretes a nível mundial. Só nesta semana, tivemos Mitsuko Uchida no domingo, Piotr Anderszewski na segunda-feira e na quinta-feira regressa Evgeny Kissin, neste caso no âmbito da série Grandes Intérpretes.

Mitsuko Uchida já se tinha apresentado em Lisboa com repertório para piano e orquestra, mas este foi o seu primeiro recital a solo na Gulbenkian. Na primeira parte interpretou os Impromptus D. 935, op. 142, de Schubert, e na segunda saiu vitoriosa do ambicioso desafio que representam as Variações sobre uma Valsa de Diabelli, op. 120, de Beethoven. A suavidade da toucher e a enorme agilidade digital que Uchida apresenta nas passagens mais rápidas (conseguindo fazer frases em legato que soam como verdadeiras linhas de um só fôlego e não nota a nota) são algumas das características da sua maneira de tocar. Todavia, as secções em fortíssimo precisavam por vezes de mais corpo e densidade. Ainda assim, a sua paleta dinâmica é suficientemente ampla e foi posta ao serviço dos inúmeros contrastes que povoam os Impromptus de Schubert, em interpretações de grande beleza que foram um misto de rigor (no que diz respeito à clareza da estrutura das obras) e de liberdade, no modo extremamente fluente com que enuncia o discurso.

Um certo distanciamento emocional não impediu uma caracterização apurada do carácter e dos ambientes sonoros que distinguem os vários Impromptus, tanto nos que apresentam maior envergadura formal (como é o caso do nº1, em forma sonata), como nas graciosas e poéticas variações sobre o conhecido tema da música de cena da Rosamunde do nº3, terminando com uma brilhante demonstração de virtuosismo e energia rítmica no nº4.

Mas a grande prova de fogo viria com as Variações Diabelli, com as quais Beethoven respondeu ao desafio de editor Anton Diabelli, que convidou 50 compositores a contribuir para uma série colectiva de variações sobre uma breve valsa da sua autoria. Beethoven ficou tão fascinando com a ideia que compôs não uma, mas 33 Variações, criando assim uma das suas obras pianísticas mais exigentes e complexas e levando ao limite do imaginável as técnicas da variação. A partitura está repleta de traços ousados e visionários, mas presta também homenagem a técnicas de escrita anteriores como a fuga. Cultiva também um incisivo sentido de humor, patente por exemplo na forma como cita a ária de Mozart Notte e giorno faticar, mas também na forma como brinca com o material musical e com as convenções.

Mitsuko Uchida correspondeu com uma interpretação veemente, inicialmente algo rígida, mas ganhando pouco a pouco flexibilidade e um admirável sentido do todo, não só na forma como realizou a transição entre as diferentes variações mas também na importância dada às reminiscências harmónicas, melódicas e rítmicas do tema ou partes do tema (por vezes transfiguradas de forma abstracta), tornando-as evidentes para o ouvinte. No final, o público aplaudiu longamente, com grande entusiasmo, mas depois do tour de force das Variações Diabelli, a pianista preferiu abster-se de fazer encores.

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